Roberto DaMatta

Roberto DaMatta

A totalidade, já retratada pelos filósofos clássicos, ganha novos contornos nas reflexões de Roberto DaMatta sobre sustentabilidade. Para o antropólogo a discussão do desenvolvimento sustentável nada mais é do que essa visão dos antigos, baseada no abandono da posição fragmentada que privilegia um ponto de vista para considerar que não há uma visão isolada.
Ainda que não se considere um entusiasta ou especialista da sustentabilidade, DaMatta vê vantagens nessa proposta que – segundo ele, não está tão sujeita a cargas ideológicas ou posicionamentos políticos. “Pela primeira vez, somos obrigados a perceber o todo, o planeta inteiro. Mas não no sentido do politicamente correto, mas sim num sentido muito mais profundo, em que o local afeta o global. É quase que o contrário da visão trivial de globalização”, ressalta.
Ao longo de mais de 40 anos, Roberto DaMatta tem se dedicado a estudar o “bicho homem”, como ele mesmo se refere aos mais de seis bilhões de seres humanos que habitam o planeta Terra. Contraditório por natureza, o comportamento dessa espécie tem rendido ao antropólogo muitos questionamentos, algumas respostas, mas pouca clareza quanto ao futuro da civilização tal como conhecemos.
O “bicho homem” também tem ganhado cada vez mais espaço na discussão da sustentabilidade e, por conseqüência, atraído a atenção do antropólogo DaMatta.
Na análise da interação homem-natureza, contam a seu favor a perspectiva histórica, a vivência junto a comunidades tidas como primitivas e a sagacidade de um pensador que têm na reflexão seu principal ofício.
De acordo com o antropólogo, a única saída para uma sociedade mais sustentável se dará a partir do uso do intelecto para ter consciência do todo e buscar zonas de sublimação de conflitos e contradições.
Em entrevista a Juliana Lopes, de Ideia Socioambiental, o autor de “O que faz do brasil, Brasil” e “Universo do carnaval: imagens e reflexões” também mergulhou nas raízes históricas e culturais do País para analisar a relação do brasileiro com a sustentabilidade. DaMatta faz contribuições significativas para compreensão da resistência a adoção de limites e atitudes preservacionistas, por exemplo. Confira essa e outras ideias a seguir.
Ideia Socioambiental: É cada vez maior o consenso de que a transição para um modelo de desenvolvimento sustentável depende, essencialmente, de uma profunda mudança de paradigmas. Partindo dessa premissa, de que maneira as ciências sociais podem contribuir com a construção de uma cultura para a sustentabilidade?
Roberto DaMatta: Dois pontos pequenos para uma questão extremamente complexa. Quando falamos de mudança de paradigma, trata-se de algo que modifica pedaços de comportamento críticos (o consumo pelo consumo, por exemplo). Ela vai atingir a produção e as relações de trabalho, visões de mundo arraigadas, questões como os elos entre sociedade e natureza que, ao meu ver, ainda não chegaram na consciência dos donos do mundo e do Brasil. Essa mudança é complexa porque o sistema capitalista está objetificado, implementado de modo que é muito difícil ter dele uma consciência de distância suficientemente clara e forte para modificá-lo pela raiz.
Penso que de todas as chamadas ciências sociais, a antropologia é a que pode oferecer alguns pontos interessantes para a discussão. Primeiro porque ela se devotou a estudar sociedades com tradições fora dos chamados sistemas religiosos e econômicos mundiais. A sociologia investiga sociedades tomadas como primitivas e selvagens, que não possuem Deus, sacrifício, livros sagrados e até mesmo alta tecnologia, classes sociais e escrita. Assim, descobriu sistemas que, até a chegada dos missionários, do administrador colonial e do antropólogo, eram inteiramente autossuficientes e mantinham com seus ambientes ecológicos, um equilíbrio formidável. Usavam-no, é claro, e o transformavam, mas não o destruíam, inclusive porque na sua leitura a “natureza” era uma criação dos deuses ou dos homens e ela própria sofria transformações, sendo dotada de pessoalidade. Em muitas tribos, a criação do homem e da sociedade coincide com a criação da natureza tal como hoje a conhecemos.
A humanidade ou a cultura não é uma dimensão exclusivamente humana (como quer a tradição Renascentista ocidental), mas pertence a todos os seres vivos. É o que tem demonstrado as obras de muitos colegas que resultam de uma teoria criativa e importante, como as pesquisas do professor Eduardo Viveiros de Castro do Museu Nacional. A antropologia descobriu – para desmaio nosso – que a ideia de um controle ou de uma luta na natureza e da sociedade contra a natureza, na qual se funda o progresso, está ausente em muitas concepções de mundo. Nelas, há um pressuposto de contrato entre recursos naturais (personificados) e homens. Estudei isso no meu ensaio sobre a “panema” na Amazônia (publicado no livro Ensaios de Antropologia Estrutural), ideia que surge em muitos locais do globo e das Américas.
Penso que tais experiências são importantes para nossas reflexões sobre os limites do homem e do sistema dominante de produção e consumo (o capitalismo). Podemos manter algumas de suas premissas políticas (liberdade, igualdade de oportunidade, livre escolha, autonomia moral do indivíduo, controle dos preconceitos etc), mas seremos obrigados a revisar outras. Não se pode mais imaginar que a natureza é uma fonte inesgotável de recursos florestais, híbridos ou minerais.
IS: Na obra “O que faz o brasil, Brasil”, o senhor faz uma distinção entre as duas faces do País. Em se tratando de sustentabilidade, que aspectos ou fatos caracterizam o Brasil (com B maiúsculo) e o brasil (com b minúsculo)?
RDM: O Brasil é parte do ocidente e, como tal, compartilha até com mais força e sectarismo em alguns setores dessas idéias de um progresso infinito, de um crescimento baseado na indústria, e na criação de uma infraestrutura e de uma economia modernas, baseada na destruição da natureza. Temos que incluir não só o Brasil como estado nacional, como país que tem projetos nacionais importantes, que quer ser um interlocutor (certamente já é, mas está predestinado – se não fizermos nenhuma besteira – a ser um interlocutor mundial). Também temos que considerar a sociedade brasileira com seus valores.
Em certos níveis, temos mais consciência do Brasil como Estado Nacional do que como sociedade. Tem-se a ilusão de que mudando o Brasil como Estado Nacional vamos mudar a sociedade, que controlando o estado nacional é possível controlar comportamentos, o que não é verdade. Esse é um problema contemporâneo do Brasil. A sociedade não pode ser controlada por decreto, os atos administrativos nem sempre correspondem aos valores da sociedade. A sustentabilidade deve falar para os Brasis, o que é difícil porque prevalece a idéia: o que é público não tem dono. Então, se não é de ninguém pode ser meu.
IS: À medida em que avança a crise econômica, ambiental e social, o Brasil atrai os olhares de todo o mundo pela sua rica diversidade cultural e natural. Na sua opinião, o País pode se tornar uma potência a partir do uso sustentável de seus recursos, ajudando a consolidar um novo modelo de desenvolvimento? Que desafios devemos superar para alcançar essa condição?
RDM: Claro que sim. Mas para isso será preciso uma elite mais lida, mais sensível e mais bem preparada. Mais aberta às mudanças, é claro, mas também e acima de tudo, ao que deve ficar. É muito fácil acusar a elite, mas ela também é conseqüência de um processo social longo. Ela também funciona no pressuposto de que é legítimo ser uma pessoa dinâmica, competitiva – é o que se aprende na escola, na faculdade. Agora, se diz que para ter sustentabilidade teríamos que reduzir o número de automóveis, contrariando o que foi aprendido. É complicado… A esperança é que hoje já existe uma consciência quanto a nossa ligação com o planeta.
I.S: O senhor acredita que os princípios da Revolução Francesa e suas reivindicações por liberdade, igualdade e fraternidade, de alguma maneira, reforçaram o individualismo e a dificuldade de nossa sociedade aceitar limites? Por quê?
RDM: Sem dúvida. A Revolução Francesa pode ser lida como uma vitória dramática, embora ainda não totalmente cabal do individualismo. Mas é ela que inventa o cidadão, que liquida a realeza e o clero como “ordens” ou segmentos sociais governados por privilégio. A Revolução Francesa abre o sistema para a igualdade, destituindo a desigualdade como um valor social.
Agora, a relação entre individualismo e limites tem outras fontes. O caso americano, um país que nasceu moderno, mostra que o individualismo está sempre sendo exaltado e, ao mesmo tempo, limitado por leis e costumes porque todos têm consciência de que o mundo é feito dos outros. Estou seguro de que se pode ter individualismo e uma alta consciência social e de limites.
O caso brasileiro tem suas excepcionalidades porque o nosso “individualismo” é, como tudo o mais, relativo. Os ricos e poderosos podem ser mais individualistas do que os pobres. Uma pessoa pode pregar individualismo para os outros e não para si mesmo etc.
IS: Precisaremos estabelecer um novo contrato social e repensar os limites dos nossos próprios direitos e necessidades individuais? Quais seriam os princípios norteadores desse novo contrato social?
RDM: O novo contrato passa por uma ideia de progresso social inusitada para a economia clássica, diz que o mundo tem limites para crescer de certas formas. Como conseqüência, também mostra que tudo tem um elo e que estamos relacionados não somente entre nós, mas com o planeta que é mesmo a “terra” onde nascemos e morremos. Ademais, essa ideia revela que o planeta é vivo, tem movimentos, uma dinâmica e reage ao que fazemos ou deixamos de fazer com ele.
Como tenho dito em algumas ocasiões, o movimento ecológico nada mais é do que os antigos chamavam de “totalidade”. Aquela visão que abandona a posição fragmentada que privilegia o nosso ponto de vista e começa a considerar que não há visão isolada de coisa alguma.
A grande novidade e esperança foi que tal perspectiva chegou livre de cargas ideológicas ou posicionamentos políticos. Ela apenas obriga a enxergar o outro lado do pêndulo: o lado do todo, do palco e do teatro. E reafirma que nem todo campo ou estádio aguenta com todos os jogos.
IS: Diferentes pesquisas mostram que o brasileiro médio, invariavelmente, está longe de ter comportamentos preservacionistas em relação ao seu patrimônio de recursos naturais, como se acreditasse que, aqui, por obra divina, eles jamais acabarão. Por que isso acontece?
RDM: Eu me lembro que, quando era garoto, o problema do Brasil era a natureza. O que nos atrapalhava era o fato de ter floresta demais. Essa visão brasileira é uma variante de uma visão ocidental padrão. A visão ocidental hoje dominante é muito mais anglo-saxônica, pós-moderna, capitalista do que propriamente portuguesa e brasileira.
Temos um sério problema de limites que decorre de um casamento mais ou menos sem reflexão entre uma sociedade aristocrática, patriarcal e escravocrata, com um sistema na letra republicano, mas com muitos apêndices corporativos e desejosos de preservar privilégios.
Soma-se a isso o nosso horror a um sistema educacional realmente universal e competente. Na hora de decidir, preferimos sempre o vale família que garante o voto e a eleição do que o prédio e a instituição de um ensino primário e secundário impecáveis que mudam sistemas. Como mudar mentalidades, sem um mínimo de mudança social?
IS: A Amazônia tem sido alvo recorrente de discurso nacionalistas do tipo “A Amazônia é nossa.” Contraditoriamente, não temos mostrado tanta competência em solucionar o impasse de seu desmatamento. Por que temos dificuldade em aceitar o apoio internacional nesse tema enxergando nele uma ingerência indevida?
RDM: Trata-se de um problema político que, penso eu, esse governo tem muita dificuldade em lidar. Um dos problemas que se colocam em relação à sutentabilidade é a questão da soberania nacional. A soberania nacional é o dogma moderno. Ela é mais forte do que é santíssima trindade. Então, como se faz, por exemplo, para deter um Estado que resolve atacar outro, como os americanos que invadiram o Iraque. Temos os judeus-israelenses que atacaram a Faixa de Gaza para lutar contra o terrorismo de um grupo que estaria instalado lá. Como se faz para impedir que isso aconteça? Não tem como. Não existe uma organização internacional, ninguém aceita abrir mão da soberania nacional.
IS: A sustentabilidade requer abordagens e estratégias específicas de região para região? Que fatores culturais e sociais não podem ficar de fora dessa discussão?
RDM: Não se pode falar em sustentabilidade sem falar em limites e nos outros: naqueles que são afetados por nossas ações e projetos. Pela primeira vez, somos obrigados a perceber o todo, o planeta inteiro. Mas não no sentido do politicamente correto, mas num sentido muito mais profundo, em que o local afeta o global. É quase que o contrário da visão trivial de globalização.  Requer a mudança do padrão de consumo, das relações entre consumidores e produtores, da velocidade de consumo material, do merchandising, afetando todas as indústrias.
Por enquanto a questão da sustentabilidade é uma problemática, ainda estamos procurando algumas soluções porque também não dá para desmontar um sistema econômico inteiro da noite para o dia. No entanto, há uma acentuada descoberta ou redescoberta da chamada ética. Ao desenvolver um novo produto na intenção de ter mais lucro, o que é legítimo, a empresa também tem que pensar nas consequências de sua atividade. Eu não posso lançar um remédio que cura a gripe, mas causa câncer. No fundo é a ideia da totalidade, das implicações das minhas ações. Acho que essa proposta está na agenda de todo mundo.
I.S: Na sua opinião, a sustentabilidade como conceito e modelo de desenvolvimento tem condições de conciliar os desafios ambientais com outras agendas urgentes e, que têm sido historicamente negligenciadas, como a desigualdade social e mesmo conflitos étnicos e religiosos?
RDM: Sim, se as transformações forem colocadas na mesa, como está ocorrendo hoje. A crise financeira e econômica tem muito a ver com o esquecimento do todo, do fim da linha, da ponta. Veja bem: o que ocorre quando tomamos mais do que podemos pagar? Ficar rolando a dívida e comprando mais é equivalente a esquecer o outro lado da moeda: o dia em que seremos chamamos a pagar a conta. Se o sistema cresce sem pensar na sua própria liquidez, ocorre uma crise. Do mesmo modo que se só usarmos nossos recursos para produzir, esgotamos nossas fontes.
Penso que em um futuro próximo teremos que enfrentar questões como soberania nacional (um obstáculo ao uso e abuso de recursos naturais que são obviamente localizados em países) e questões de limites de consumo. O modelo tem que mudar. Será preciso retornar a velha e cara contenção ou ascetismo calvinista que eu ainda encontrei como uma virtude nos Estados Unidos no início dos anos 60.
Hoje, temos uma consciência muito clara de que a atividade industrial tradicional clássica tem um limite, está aí a crise. Pela primeira vez, estamos nos confrontando com limites. A depressão nos Estados Unidos não é só econômica, tem uma depressão sociocultural bastante grande. Os americanos estão vendo que não dá para viver como nos anos 50 e 60, fumando e bebendo desbragadamente.
Outro movimento interessante que aparece com a sustentabilidade planetária é a sustentabilidade biológica. Hoje sabemos por A + B que uma pessoa que bebe pouco, controla a comida e faz exercícios vigorosos vai viver mais. É um elemento que se coloca como restritivo, trazendo essa sobriedade.
IS: Diante dos desafios atuais, você é otimista quanto a uma transição para um modelo de desenvolvimento mais sustentável?
RSM: Eu não sou otimista. O bicho homem é perverso. Nós somos muito malucos, matamos em nome de Deus, em nome da bondade, em nome do povo. O nosso comportamento é muito contraditório, é necessariamente contraditório porque é humano. Não está baseado apenas em coisas utilitárias, necessidades básicas que vêm da biologia, é uma biologia construída. Não sabemos quem somos na realidade. Estamos sempre nos descobrindo. Convenhamos que o homem é um animal difícil de se governar, como é que se governa um cara que não sabe quem ele é? É um mundo complicado… Mas isso não significa que eu não viva com esperança, que não acha que a vida não seja boa e tento aproveitá-la.
O exercício mais importante desse tipo de entrevista é levar as pessoas a refletir porque a única saída é o uso de algo poderoso, que é o intelecto. Nele está a nossa redenção de todas as contradições que possam ser apontadas, talvez, eventualmente, não resolvidas, mas ultrapassadas ou diluídas através do uso da razão, da reflexão. A tentativa de ter consciência das coisas e a busca por zonas de sublimação de conflitos e contradições.
Pela primeira vez, somos obrigados a perceber o todo, o planeta inteiro. Mas não no sentido do politicamente correto, mas num sentido muito mais profundo, em que o local afeta o global. É quase que o contrário da visão trivial de globalização.  Requer a mudança do padrão de consumo, das relações entre consumidores e produtores, da velocidade de consumo material, do merchandising, afetando todas as indústrias.”

Inscreva-se em nossa newsletter e
receba tudo em primeira mão

Conteúdos relacionados

Entre em contato
1
Posso ajudar?