“Empresas devem gerar valor compartilhado”: Como Sistema B está mudando o paradigma corporativo rumo à economia de impacto

“Empresas devem gerar valor compartilhado”: Como Sistema B está mudando o paradigma corporativo rumo à economia de impacto

Num novo modelo capitalista, a missão principal de uma empresa é gerar valor compartilhado. Ajudá-las nesse processo é a principal missão do Sistema B, conta a diretora executiva, Francine Lemos.

Um desses caminhos é a certificação como Empresa B (aqui explicamos direitinho esse conceito), uma espécie de selo de qualidade que dá à certificada não só o status de empresa de impacto social e ambiental positivo como também a coloca em um grupo global de negócios para debate de melhor práticas.

Hoje, há 4.247 empresas B em 77 países – 230 destas empresas estão no Brasil, incluindo Natura, a maior empresa B do mundo, e outras como Mãe Terra, Hering, Já Fui Mandioca, Hering e Movida.

Além da transformação rumo a um capitalismo de stakeholders por meio das empresas, o Sistema B também busca influenciar políticas públicas para favorecer a criação de um ecossistema voltado para uma economia de impacto. Uma dessas ações é um anteprojeto de lei que cria as “Sociedades de Benefício, inspirada na figura das Benefit Corporation norte-americanas.

A seguir, Francine Lemos conversa com NetZero sobre como os padrões oferecidos pelo Sistema B podem alavancar as práticas ESG das empresas e gerar mais impacto no país.

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NETZERO: O Movimento B nasceu há quase 16 anos com o intuito de provocar uma mudança histórica na cultura econômica global. Essa proposta parece ter ganhado força globalmente, inclusive no Brasil, nos últimos dois anos, com a ascensão das práticas ESG. Como você avalia esse processo?

FRANCINE LEMOS: O movimento nasceu nos Estados Unidos com a inquietação de alguns empreendedores que tinham negócios muito diferenciados na época – imagine 15 anos atrás, não falávamos em ESG. Quando eles venderam a empresa de artigos esportivos, que era extremamente orientada aos stakeholders e com uma cultura forte de propósito, em dois anos ela tinha perdido toda a essência. E nessa reflexão concluíram que o melhor que tinham a oferecer ao mercado eram boas práticas para garantir que outras empresas seguissem esse rumo.

“E o movimento nasce com a crença de que se reorganizamos o papel das empresas na sociedade –de atuar não só para minimizar impactos negativos, mas para regenerar e para provocar impacto positivo e valor compartilhado– podemos mudar o mundo.”

O Movimento já está em mais de 70 países, há mais de 4.000 empresas B certificadas no mundo todo, sedo 700 na América Latina e 230 aqui no Brasil. O Brasil é um país muito relevante dentro do ecossistema.

Esse é um movimento pronto para o tempo em que ele vive, porque temos a resposta para o que o ESG precisa. Por isso cresceu tanto nos últimos dois anos, há uma busca legítima por esses padrões e o movimento consegue estabelecer indicadores globais e desmistificar o que a empresa deve perseguir se quer atuar sob esse novo capitalismo. Ele mostra o caminho e certifica as empresas que conseguem alcançar esses padrões.

O que as empresas precisam para receberem a certificação?

Há dois aspectos muito importantes quando uma empresa se torna “B-Corp”: o primeiro deles é passar por uma avaliação muito rigorosa, em que a empresa tem que mostrar seus padrões; o segundo é vincular a seu estatuto o seu compromisso em gerar valor no longo prazo e consultar seus stakeholders na tomada de decisão.

Isso coloca na empresa uma visão de que seu propósito maior não é só maximizar o lucro para seu acionista e não pode ser a qualquer custo. Mas a missão principal de uma empresa, e é assim que a gente entende o novo capitalismo, é gerar valor compartilhado.

Em 2020, o B Lab foi reconhecido pela Fast Company como uma das organizações mais inovadoras do mundo porque responde a um anseio muito relevante do momento atual. A crise só revelou uma situação muito antiga, de um sistema econômico que foi moldado sobre bases que não fazem mais muito sentido e acaba gerando desigualdade e degradação ambiental.

“Nesse “boom” de ESG, é preciso diferenciar quem faz de quem diz que faz. Nesse universo, as certificações de maneira geral –e a B em específico- ganharam muita relevância. A certificação B é um grande guarda-chuva, por olhar como a operação está estabelecida.”

Inclusive, se a empresa tem outras certificações, ela ganha pontos. É um norteador no contexto ESG, e por isso as empresas têm se orgulhado tanto de dizer que têm.

Em que ponto de maturação estão essas companhias que chegam até vocês em busca de certificação?

Chega até nós de tudo. Eu recebo desde ligação de curiosos dizendo “Me pediram para criar uma área de ESG na empresa”. Então, nossa missão como movimento é acolher e apoiar a transição de todos. E para isso nós oferecemos ferramentas. A certificação em si é para empresas que já estão em um grau de maturação mais alto. Tanto que a gente recomenda o “B Impact Assessment”, que é uma ferramenta online, digital, gratuita e confidencial, que qualquer empresa, de qualquer tamanho, segmento ou parte do mundo pode usar para entender duas coisas: onde ela está dentro dessa jornada, e a ferramenta dá um diagnóstico claro, e como gerenciar esse processo, que pode ir sendo atualizado conforme uma ação é implementada.

Recomendamos que uma empresa, para se submeter ao processo de certificação, já esteja em um patamar mais alto. Nós ajudamos nesse caminho, queremos que qualquer empresa se comporte como uma empresa B, mas se ela não tiver essa maturação, pode perder tempo e dinheiro, porque é um processo caro.

O “B Impact Assessment” tangibiliza tudo isso e, gosto de dizer, ele desmistifica o ESG. A empresa passa por avaliação em cinco pilares: governança, colaboradores, comunidade, meio ambiente e, por fim, o que acho que é o grande diferencial das Empresas B, o cliente. Nós avaliamos como o modelo de negócio dela está gerando impacto positivo.

A ferramenta olha transversalmente as práticas e o modelo de negócio de impacto.

Há muitas pequenas empresas com certificação B. Elas são o foco?

Quando olhamos para a nossa rede, a maioria são empresa pequenas. O impacto da certificação é diferente para grandes e pequenas. De maneira geral, a pequena empresa certificada já tem um modelo de negócio de impacto muito claro: ela nasceu para resolver um problema da sociedade ou do meio ambiente. São empresas muito inovadoras, de empreendedores visionários. O que elas ganham com a certificação é estrutura. Eu já ouvi empresário dizer que o processo acelerou em 10 anos a curva de ESG. Então elas ganham em amadurecimento ESG, mas, para isso, elas precisam comprovar o seu modelo de impacto.

Quando você vai para as grandes que buscam certificação, elas já estão mais estruturadas, já têm políticas implementadas. A maior dificuldade delas é comprovar o modelo de negócio de impacto por meio de métricas claras. Pensa na Hering, uma empresa centenária que acabou de se certificar: é algo mais complexo de se fazer, porque quando ela nasceu não necessariamente pensou nisso.

O benefício da certificação B é ajudar nesses dois polos: como mensurar e comprovar um modelo de impacto positivo, por um lado, e, por outro, como estruturar as práticas ESG, considerando-se os mais altos padrões internacionais.

Existe interesse em ampliar o número de grandes empresas entre as certificadas?

Nosso interesse é garantir a perenidade e integridade do movimento. O que a gente busca são empresas com modelo de negócio claro, que conseguem comprovar seus standards independentemente do tamanho. Agora, o que tem acontecido nos últimos anos é que temos tido aumento na demanda de empresas maiores. E, pensando na nossa teoria de mudança, é importante, porque quanto maior a empresa, maior seu potencial de impacto. E nossa missão é garantir impacto positivo; se a gente conseguir fazer isso por meio das ferramentas que temos, melhor.

Como o sistema B dialoga com a necessidade da apresentação de resultados em relatórios anuais ou com o monitoramento das ações ESG estabelecidas pelo processo?

Temos tentado cada vez mais fazer alianças e parcerias com outros indicadores. O Sistema B já é parceiro do GRI, então temos uma ferramenta que faz um “de / para” entre as métricas. Lançamos no mês passado uma ferramenta que ajuda as empresas a navegarem nessa sopa de letrinhas que há no mercado. São muito os requerimentos que estão sendo exigidos e precisamos ajudá-las nisso.

Depois da certificação, o que acontece com a empresa? Ela pode vir a perder o selo?

Temos processos pré-certificação, em que ajudamos as empresas a chegarem nesse patamar, porque no fim é esse o nosso objetivo. Então temos alguns programas para fazer as empresas olharem para sua cadeia de valor, por exemplo, e ajudar seus parceiros a mensurar seus impactos. Temos outro caminho para ajudar a preencher a avaliação e ter o diagnóstico.

Depois que a empresa se certifica, precisa comprovar que está mantendo os padrões pelos quais ela foi certificada. Então, a cada três anos, precisa passar novamente pelo processo. Se não comprova, perde a certificação. E ainda temos canais de denúncia e compliance, caso algum stakeholder tenha identificado alguma falha, daí a empresa passa por investigação.

Hoje são 230 companhias certificadas no Brasil. Existe uma concentração grande dessas empresas regionalmente e setorialmente. Existe um esforço para diversificar esse alcance?

Existe. Esse é um grande desafio, porque de fato o ecossistema de impacto no Brasil é muito concentrado. E a gente quer levar esse conceito para Brasil todo. Por isso, no ano passado relançamos um programa chamado Multiplicadores B, em que pessoas de fora de São Paulo que tem interesse em gerar impacto e disseminar os valores do Movimento passam por treinamento intenso. É uma forma de levar essa mensagem cada vez mais longe. E temos as comunidades locais, para ir fomentando ecossistema de impacto em outras regiões.

Alguma cidade em específico é foco dessas ações?

Não, trabalhamos com o Brasil todo. Nordeste vem crescendo bastante, assim como o Sul. Mas é uma jornada.

Quem trabalha nessa área há muito tempo está otimista com as perspectivas?

Com certeza, é uma grande felicidade para quem está nesse movimento ver o que está acontecendo agora. Claro que há um pouco de preocupação em relação à integridade do que está sendo feito, mas estamos vendo um amadurecimento do mercado que é muito positivo.

Você se refere ao greenwashing?

Sim, essa é a grande questão.

A COP26 ajudou a guiar as discussões sobre meio ambiente em 2021, inclusive aumentando o número de empresas que se comprometem com net zero. Você acha que em 2022, isso deve se repetir? O que esperar dessa agenda?

Temos duas agendas mais fortes quando discutimos aqui no Movimento B sobre mudanças sistêmicas. Uma é clima e a outra são as desigualdades. E aqui não podemos desassociar desigualdade da questão racial.

De fato, a questão climática ganhou muito relevância no ano passado. O que eu acho é que precisamos entender com mais profundidade a questão ambiental, quais as implicações para o Brasil –não o que está na pauta europeia, mas entender como tropicalizar e quais são os desafios locais. Tem pessoas trazendo isso de maneira brilhante; Natalia Castan, conselheira do Sistema B é uma delas. Precisamos olhar para esses temas de modo mais correlacionado.

“O principal tema do país é a desigualdade e acho que a pandemia foi um tapa na cara, revelou que precisamos olhar para isso com o carinho que merece. [Desigualdade] Não pode sair da agenda das empresas, não é moda, é fato, é urgente, e precisamos olhar para as agendas de maneira mais interrelacionada.”

Por exemplo, quando olhamos para [as enchentes no início do ano] Bahia, é claramente uma questão de clima, mas que está afetando uma das populações mais carente dos país. Começamos a falar muito sobre justiça climática e precisamos começar a fazer a interrelação dessas pautas. Não podemos perder o pé da questão social, porque é a grande questão que o país enfrenta. Então temas relacionados à educação, saúde, justiça, equidade, diversidade, inclusão são temas que não podem sair da nossa pauta.

“As empresas mais e mais precisam olhar para as demandas reais da sociedade para conseguir entregar causas relevantes e que consigam atender a sua localidade. Clima é uma obrigação, mas não tenho dúvidas de que a questão social é “a” questão.”

Como as empresas conseguem equilibrar todos esses aspectos? É difícil, mas é difícil viver no mundo de hoje. A empresa precisa ter a capacidade de entregar valor. Agora, para se posicionar mais fortemente diante de uma causa, tem que estar alinhado ao proposito dela, atendendo a uma demanda que é real. Essa é a análise que tem que fazer para fugir do greenwashing.

Depois que a empresa recebe a certificação, ela continua em contato com o Movimento?

Ela entra para uma comunidade. As empresas têm comunidades para a troca de melhores práticas. Fazemos eventos de networking, oferecemos apoio de negócios e temos rodadas de negócios. Também estamos criando “gôndolas B” em supermercados, e os 3 maiores marketplaces hoje –Lojas Americanas, Mercado livre e Magalu– têm “gondola B” nos sites para dar visibilidade ao consumidor de quem são essas empresas. Mais do que a certificação, a empresa entra para uma comunidade de negócios, em que ela tem acesso a empresas do mundo todo e troca de boas práticas em nível local.

Temos também uma ação com o governo. Temos um grupo jurídico B, que trabalha com nossa estratégia de advocacy, para ajudar a criar infraestrutura para ajudar a florescer esses negócios de impacto no Brasil. Hoje o Sistema B faz parte do Enimpacto [Estratégia Nacional dos Investimentos e Negócios de Impacto], inclusive lideramos um grupo de trabalho [voltado à promoção do macro ambiente normativo e institucional favorável] no Ministério da Economia para ajudar a trazer esse tema para a pauta do governo.

Já há resultados concretos desse trabalho?

Estamos em tramite com uma legislação para ajudar a criar um tipo legal que qualifica empresas [o anteprojeto de lei que cria as “Sociedades de Benefício”; já tem projeto de lei estadual e municipal, há uma rede de advogados olhando para isso, e a própria criação da Enimpacto é resultado de uma ação coletiva da qual o sistema B esteve à frente desde o início.

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