A engenharia das pontes sustentáveis

A engenharia das pontes sustentáveis

Por Cláudia Piche
Em uma de suas definições sobre liderança, Peter Druker disse, certa vez: “O líder eficaz não é alguém amado e admirado. É alguém cujos seguidores fazem as coisas certas.” Em tempos em que “fazer as coisas certas” pode significar mudar o jeito de fazer quase tudo, a definição simples de Dalberto Adulis soa como complemento ideal à frase do guru da Administração. “Lideranças são pessoas que promovem transformação”, define o diretor executivo da Associação Brasileira Para o Desenvolvimento de Lideranças – ABDL.
O conceito de promotores da transformação há muito parece ter sido incorporado por lideranças da sociedade civil, sobretudo nas comunidades e nos movimentos ambientais. Mas, de alguns anos para cá, a maior procura por programas de desenvolvimento de líderes tem vindo do setor privado. A própria ABDL, identificando esse aumento de demanda, desenhou um programa voltado exclusivamente para profissionais de empresas. (Veja em Para saber mais)
“Antes, o ideal dos profissionais do setor privado era ganhar dinheiro. Hoje eles querem outras coisas: diminuir embalagens, desenvolver produtos melhores para o meio ambiente. Esses valores, agora, estão dentro das pessoas. Por isso, a mudança acaba acontecendo”, acredita Adulis. Para o diretor da ABDL, no entanto, as lideranças que têm capitaneado a transição para a sustentabilidade nas empresas ocupam, em geral, cargos de média e alta gerência – em alguns casos, diretoria – e ainda encontram resistência dos tomadores de decisão, sobretudo em corporações multinacionais.
O desafio maior, diz Adulis, tem sido o do convencimento. “Ainda há um conservadorismo muito grande dentro das organizações e, muitas vezes, as novas lideranças não conseguem iniciar ou sustentar esses processos.” Explica-se. “Quando se fala em transformação, estamos falando de remodelar tudo. Tudo tem de ser reinventado.” Para ele, nas empresas particularmente, as pessoas usam ferramentas erradas, para medir coisas erradas. Portanto, são cobradas por coisas erradas. “Vencer a prepotência de chefias que acham que sabem tudo e quebrar barreiras hierárquicas decididamente não é fácil!”
Seja no enfrentamento das mudanças climáticas, na proposição de relações de trabalho mais humanas e menos competitivas ou, ainda, na maneira de enxergar o público e o privado, liderar processos de transição demanda tempo e energia. Muita energia. “Sem isso, não vale a pena nem começar. Manter o mesmo, ainda acaba sendo o caminho mais cômodo para muita gente”, lamenta.
Outras dificuldades apontadas pelo especialista – e enfrentadas por aqueles que buscam protagonizar processos de transição para um modelo corporativo mais sustentável – são a falta de visão de médio e longo prazos e de investimento em inovação, que levam à perda de grandes oportunidades. Caso, por exemplo, do mercado de energia eólica. “Apesar de todo o potencial do Brasil nesse campo, a China hoje é o maior parque eólico do mundo! Está exportando essa energia renovável! Perdemos a oportunidade desse mercado para os chineses e alemães, porque sentamos confortavelmente em cima do pré-sal e das hidrelétricas que serão construídas”, indigna-se Adulis.
Pavimentando pontes
Exemplos como esse revelam a necessidade premente do fortalecimento e de uma maior articulação entre lideranças dos setores privado, público, acadêmico e da sociedade civil. Há 16 anos, a AVINA – organização voltada a apoiar iniciativas que contribuam para o desenvolvimento sustentável na América Latina – vem trabalhando na construção de pontes entre lideranças de todos os níveis. O primeiro desafio é identificar os chamados líderes-parceiros ou aliados. “No entendimento da AVINA, aqueles que com visão transformadora assumem a liderança têm um papel especial em promover a convergência de interesses em torno de modelos sustentáveis, sendo que o líder autêntico é aquele que prioriza fazer crescer aos demais, sem deixar de cuidar de si”, diz Neylar Lins, responsável pela AVINA no Brasil.
Graças à sua grande capilaridade geográfica – 24 escritórios distribuídos pelo continente – a Fundação tem identificado com sucesso seus líderes-parceiros – mais de mil atualmente. E conseguido estabelecer as chamadas agendas de ação coletiva. Para entender o que isso significa, nada melhor do que recorrer ao exemplo. E, nesse sentido, casos como o do engenheiro florestal e atual consultor do Ministério do Meio Ambiente, Tasso Azevedo, são emblemáticos.
Com o apoio da organização – e recursos conjuntos da Climate Works Foundation -, o jovem líder articulou o comprometimento do governo brasileiro com metas de redução do desmatamento durante o encontro global de Copenhague (COP15). Em uma ação sem precedentes na política brasileira para mudanças climáticas, o País responsável por 30% do desmatamento mundial se comprometeu com o corte de emissões a um nível real de 20%, em relação a 2005. Tais metas foram incorporadas à Política Nacional para Mudanças Climáticas, autorizando o governo a utilizar incentivos fiscais e regulatórios para alcançar esse objetivo em distintos setores. Paralelamente, Tasso Azevedo idealizou e implementou o Fundo Amazônia, que já levantou recursos da ordem de US$ 100 milhões para 60 projetos direcionados ao uso sustentável da floresta, constituindo-se no maior fundo mundial de apoio a projetos de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), com o objetivo de ajudar o Brasil no cumprimento dessas metas.
Articulações desse tipo, portanto, envolvem lideranças de todos os setores. Mas as pontes construídas pela AVINA não são necessariamente apenas globais, como a do exemplo acima. “A intensidade e a densidade do vínculo da instituição com os aliados variam em função da estratégia compartilhada e são orientadas por uma série de princípios – causa comum, interdependência, transparência, inovação, cuidado, eficiência e efetividade nacional e continental” – explica Neylar Lins.
Em outro exemplo clássico da pavimentação desse caminho de diálogo entre lideranças, a instituição vem apoiando, desde 2003, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. Além do aporte financeiro, que viabiliza a interlocução do MNCR com importantes órgãos governamentais, a parceria também ajuda no estabelecimento de relações com o setor privado e em iniciativas-piloto inovadoras que permitam não só demonstrar o modelo de gestão de resíduos com também promover a inclusão social dos catadores. Prova da eficiência dessa agenda foi a sansão, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, da Lei 11445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico,  autorizando a dispensa de licitação para a contratação de associações ou cooperativas de catadores de materiais recicláveis, a fim de realizar coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos, por parte das organizações do Estado. Essa foi a primeira vez que a lei de licitação (9666) foi alterada para beneficiar a inclusão econômica e social de um segmento da população historicamente desfavorecido. O fato representou mais um avanço no reconhecimento dos empreendimentos dos catadores, que já haviam sido beneficiados com uma linha de crédito inédita no País, desenvolvida pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e que busca canalizar mais de R$ 16 milhões (aproximadamente US$ 9 milhões) a serem repassados para 24 cooperativas, em 10 unidades da Federação, beneficiando cerca de 1,5 mil cooperados. As operações integram 34 projetos já aprovados pelo BNDES, no valor total de R$ 22,9 milhões, cujo financiamento destina-se a reformas de infraestrutura física, assistência técnica e capacitação dos catadores.
Costurando teias
Quando se fala na articulação de lideranças para o desenvolvimento de políticas públicas, os especialistas concordam que, em geral, os principais promotores da mudança ainda vêm das grandes ONGs – Greenpeace e WWF são algumas lembradas pelo diretor executivo da ABDL, Dalberto Adulis. Mas ele também acredita que, cada vez mais, espaços de diálogo vêm sendo construídos com grande interesse também do setor privado. Como exemplo, cita os processos de certificação florestal, “com as empresas do setor querendo fazer mais sustentável e buscando dialogar com todos os públicos envolvidos”, relembra.
Um desafio importante nesse sentido – destaca o responsável pela ABDL – é derrubar preconceitos. De todos os lados. “Quando iniciamos um programa de desenvolvimento de liderança para um grande banco, em que os executivos tinham de se engajar em projetos de desenvolvimento local na Bahia e no litoral sul de São Paulo, eu mesmo cheguei a ter uma ponta de dúvida se daria tão certo”, confessa Adulis. Mas ele se recorda de comentários memoráveis, ao final do processo, do tipo “nunca pensei que gente de banco pudesse ter coração”, por parte da comunidade. Ou, ainda, da descrição de um sentimento “quase sobrenatural”, por parte dos executivos, da efetividade de um relacionamento entre pessoas de campos tão diferentes. “É preciso um trabalho prévio para criar espaços de diálogo propícios”, diz.
Trabalho prévio para transformar trilhas solitárias em intrincadas teias de lideranças de variados setores significa também preparar pessoas para tal função. “Não acredito que seja possível formar líderes, mas sim desenvolvê-los”, diz Adulis. E, para tanto, escolas de negócios ou mesmo cursos específicos não bastam. “Uma coisa é o conhecimento que se adquire nessas instâncias. Mas, quando se fala em sustentabilidade, mais do que conhecimento é preciso enfrentar um profundo processo de transformação pessoal, em que o indivíduo se comprometa efetivamente com seu papel na vida e na organização.”
DNA ou DNH (Desenvolvendo Novas Habilidades)?
Quais seriam, então, as características necessárias aos novos líderes? Seriam algumas delas natas ou pacíveis de se aprender e desenvolver? Neylar Lins, da AVINA, acredita que essa clássica e histórica discussão do campo da Administração tende a pender para a segunda hipótese, com inúmeros autores defendendo e apresentando evidências de que é possível – sim – desenvolver habilidades de liderança. “Concordo particularmente com essa visão, mas percebo que ainda existe um senso comum de que a liderança é algo nato.” Adulis, da ABDL, concorda com Neylar. “Se a pessoa tiver realmente um desejo íntimo de transformação e se dispuser a desenvolver certas habilidades, ela pode, certamente, tornar-se uma liderança”, acredita.
Clareza individual e coletiva, compreensão do papel a desempenhar – na empresa e na sociedade – são algumas das habilidades necessárias às novas lideranças, segundo Adulis. Gestão de recursos – não apenas financeiros e físicos, mas também do tempo -, capacidade de dialogar e comunicar bem as ideias, “porque não se trata de vendê-las, mas de construir um projeto”, e saber ouvir – “ouvir muito!” – também são qualidades imprescindíveis. Além disso, diz Adulis, diante da complexidade dos processos de mudança para a sustentabilidade, é fundamental a compreensão sistêmica – saber estabelecer links e conexões entre as dimensões sociais, ambientais, econômicas e políticas, já que “sem engajamento e participação política, nada se consegue”, acredita o líder da ABDL.
Diante de todo esse cenário, Dalberto Adulis admite que à simplicidade de sua definição de liderança do começo deste texto (“Lideranças são pessoas que promovem transformação”) talvez seja necessário acrescentar que “líderes são também pessoas angustiadas com a complexidade do processo, mas com um imenso desejo de mudança”. Sintetizando um pouco mais, vale a pena recorrer à definição de outro “papa” da Administração. Para Charles Hands – integrante, assim como Peter Druker, da seleta lista dos 50 maiores pensadores do mundo dos negócios, “um líder forma e partilha uma visão, que dá sentido ao trabalho dos outros.” Simples assim.
Para saber mais
O LEAD da sustentabilidade
Sob o guarda-chuva do LEAD (Leadership for Environment and Development), o New Earth Leaders foi totalmente desenhado no Brasil pela Associação Brasileira Para o Desenvolvimento de Lideranças (ABDL) em parceria com a Mutual Learning Journeys, da Holanda. Trata-se de uma espécie de “LEAD da Sustentabilidade”, um programa de desenvolvimento pessoal e organizacional para jovens profissionais que promove a formação de lideranças nesse campo. A metodologia ancora-se em jornadas de aprendizagem, conciliando visitas a projetos socioambientais, vivências e implementação de iniciativas de sustentabilidade pelos participantes em suas próprias organizações. O programa inspira-se nos princípios da Carta da Terra e na Teoria U, que procura articular o sentir, o refletir e o agir, contemplando a integração entre as dimensões individual, interpessoal e sistêmica.
A primeira edição, em 2010, foi exclusivamente voltada a profissionais de empresas e contou com oito representantes do Brasil (veja depoimentos na reportagem que começa na pág. xxx) e seis holandeses – e períodos de imersão nos dois países.
Este ano, o programa será aberto também às organizações da sociedade civil, com 25 vagas no total, e deve acontecer entre junho e novembro. A grade de atividades será mais flexível, com possibilidade de escolha dos eventos. Além das jornadas de aprendizagem no Brasil (Pará) e na Holanda, possivelmente a África do Sul também integre a programação, que oferece, ainda, participação no seminário internacional do LEAD, no Canadá.
Para saber mais, visite o site: www.abdl.org.br.

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