Artigos – O principal desafio do terceiro setor no Brasil

Artigos – O principal desafio do terceiro setor no Brasil

O principal desafio do terceiro setor no Brasil
Legitimidade, eficácia, parcerias, sustentabilidade e justiça social vêm sendo apontados por alguns autores (e. g., Lester Salomon) como os grandes desafios do terceiro setor no plano mundial. É difícil discordar dessa análise. Todos esses desafios gerais também incidem no caso brasileiro, como não poderia deixar de ser. No entanto, tal diagnóstico – muito geral – não diz muita coisa sobre o caso particular do Brasil.
No Brasil existem dois tipos de desafios: os desafios conjunturais, que decorrem da orientação governamental que está vigorando a partir de 2003; e os desafios que poderiam ser denominados como estruturais, que dizem respeito ao padrão predominante de relação entre o Estado brasileiro e a nossa sociedade civil.
Começando pelos desafios conjunturais, não há como negar que eles são imensos. Estamos sob um governo que não acredita na sociedade civil a não ser como espaço de disputa de hegemonia, como conjunto de entes e processos que precisam ser conduzidos por algum destacamento privado (um partido), instalado como força de ocupação nos aparelhos do Estado. Esses novos atores partidário-governamentais não vêem nenhum sentido na orientação estratégica de fortalecer o terceiro setor porque não têm sequer o conceito de “sociedade civil”. Não acreditam no público não-estatal como um novo tipo de agenciamento subsistente fora da ordem do Estado e da lógica do mercado. Para eles, o público se define com base na ideologia de um grupo que almeja conduzir a sociedade segundo uma direção apontada por uma filosofia particular da história.
Portanto, o maior desafio do terceiro setor brasileiro, em termos conjunturais, é tentar impedir (ou pelo menos resistir ao máximo para dificultar), por um lado, que o atual governo capture o terceiro setor como correia de transmissão ou linha auxiliar de suas políticas centralizadoras, assistencialistas, neoclientelistas e adversariais – que destroem capital social; e, por outro lado, tentar barrar eventuais iniciativas autoritárias de reforma do marco legal que regula as relações do terceiro setor com o Estado, impedindo a aprovação de leis que promovam retrocessos em relação ao que já alcançamos na década de 1990.
Em termos estruturais, o grande desafio do terceiro setor brasileiro é assumir o seu papel estratégico de agente privilegiado de produção de capital social diante de um Estado que, historicamente, se caracterizou como exterminador desse tipo de recurso.
Uma pauta para um novo consenso, não centrado no Estado e nem no mercado, porém na sociedade civil, capaz de desdobrar, em ações concretas, o papel estratégico do terceiro setor para o desenvolvimento humano e social sustentável do país, deveria partir, dentre outras, das seguintes diretrizes:
a) como correspondente da disciplina e da responsabilidade fiscal, a responsabilidade social de indivíduos e organizações;
b) em vez de apenas contenção do gasto público, sobretudo na área social, a mudança do perfil desse gasto, com a progressiva mas determinada substituição de programas centralizados e baseados na oferta estatal (principalmente os de transferência direta de renda) por programas descentralizados, que promovam a negociação e exijam contrapartidas locais visando estabelecer o casamento entre oferta e demanda, e por programas de indução ao desenvolvimento e de investimento em capital humano e em capital social baseados na parceria com o terceiro setor;
c) para além de uma reforma tributária que evite déficits fiscais, uma reforma tributária que também desonere a produção formal, abarque a economia informal e estimule o engajamento do terceiro setor nas atividades de interesse público;
d) contrabalançando políticas de privatização e evitando “fugir para trás” com políticas de reestatização, políticas de publicização que envolvam a parceria com a sociedade e, em alguns casos, a transferência, para organizações da nova sociedade civil situadas na intercessão com o Estado e para organizações da sociedade civil de caráter público constituídas sob o influxo de razões de Estado, de funções até então desempenhadas unicamente pelo Estado;
f) superando as tentações autoritárias de excessiva regulamentação estatal, a instituição de mecanismos de controle social do Estado pela sociedade, de orientação social do mercado e de responsabilização social de todos os setores, que promovam a correspondência entre direito e responsabilidade (segundo a máxima “nenhum direito sem responsabilidade”);
g) por último, uma reforma do marco regulatório do terceiro setor com o Estado e com o mercado, que facilite as parcerias intersetoriais, possibilite a construção de um sistema de financiamento mais sustentável para o terceiro setor, crie ambientes locais e setoriais favoráveis à obtenção de sinergias entre ações governamentais e não-governamentais, de modo a aumentar a eficiência e a eficácia das políticas públicas e a alavancar recursos novos — que não podem ser extraídos como receita fiscal, mas podem ser mobilizados na base da sociedade e direcionados para o desenvolvimento dos ativos já existentes, a dinamização das potencialidades latentes e a satisfação das necessidades das populações.
No Brasil, portanto, tanto em termos conjunturais quanto estruturais, existe – para além dos desafios gerais já apontados – um desafio principal para o terceiro setor. Ele deve assumir o seu papel estratégico para o desenvolvimento fazendo aquilo que é conforme ao seu ser, ou seja, produzindo capital social. Ora, isso significa, antes de qualquer coisa, resistindo ao intervencionismo e a instrumentalização governamental e superando os padrões verticais de relacionamento com a sociedade próprios da tradição autocrática do Estado brasileiro, incentivar a formação e animar o funcionamento de redes sociais e ensaiar processos democrático-participativos.
*Augusto de Franco é coordenador geral da Agência de Educação para o Desenvolvimento (AED) e diretor-executivo da Comunitas
 

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