Cinema Social – O cartão que tudo compra e as crianças invisíveis

Cinema Social – O cartão que tudo compra e as crianças invisíveis


A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo nasceu com esse nome, pequena mas extremamente criteriosa, há 29 anos. Era um evento da área de cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e usava o auditório subterrâneo da instituição, na avenida Paulista, como principal sala de exibições. Ano a ano, foi ampliando seu circuito e público. A certa altura, rompeu o cordão umbilical com o Masp e alçou vôo próprio, sob comando do crítico Leon Cakoff. Hoje, é um dos principais eventos culturais do calendário brasileiro, com a exibição de três centenas de filmes e dezenas de milhares de espectadores, além de forte presença nos meios de comunicação.
Custa dinheiro realizá-lo, e ele vem de diversas fontes, mas sobretudo de um patrocinador que se integrou à marca do festival. Agora, seu nome é Mostra BR de Cinema. O BR também é de Brasil, mas entra aí por causa da BR Distribuidora (leia-se Petrobrás). Nada contra, evidentemente. Faz tempo que ginásios, estádios e casas de espetáculo espalhados pelos EUA e pela Europa carregam o nome de patrocinadores. Mesmo o Brasil, em geral atrasado na adoção de estratégias mais agressivas de marketing já empregadas em outros países, tem seus exemplos, como o Credicard Hall, em São Paulo, ou a Arena Kyocera, em Curitiba.
Antes de cada uma de suas centenas de sessões, já se tornou tradição, como nos principais festivais do mundo, que a Mostra exiba uma vinheta encomendada a um artista (sempre de extremo bom gosto, às vezes aplaudida nos primeiros dias, quando o público ainda não se acostumou a ela). Um pouco antes da vinheta, costuma vir uma propaganda do patrocinador. Aí é que, em 2005, morou o problema. O patrocinador optou por utilizar o espaço para divulgar seu cartão de crédito. Nada contra, evidentemente. Mas a peça era de uma infelicidade galopante: sugeria ser possível “comprar” não apenas bens materiais, mas sentimentos e sensações. Uma reconciliação entre namorados, por exemplo. Mais politicamente incorreta e alinhada com o que de pior a sociedade de consumo propaga, impossível. Se é para entrar no clima, o cartão de crédito poderia ter sido usado para comprar campanha mais adequada ao público do festival.
E mais adequada também à linha mestra da programação: esse duvidoso cartão de visitas do patrocinador, contraproducente ao granjear antipatia para a marca que pretendia divulgar, promovia estranho ruído ao ser exibido antes de filmes que se contrapõem a esse modo mercantilista de encarar a vida. Filmes engajados, por exemplo, na arrecadação de fundos para remediar problemas gerados pela desigualdade social que dá cartão de crédito a alguns e barriga vazia a outros. É o caso dos sete curtas-metragens reunidos em Todas as Crianças Invisíveis (All the Invisible Children), cuja renda, a partir do lançamento internacional na virada de 2005 para 2006, será revertida para o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância e Juventude) e a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
Concebido pelos produtores italianos Chiara Tilesi e Stefano Veneruso, da MKFilm Productions, o projeto teve o objetivo de “chamar a atenção para os problemas da infância em todo o mundo”, refletindo sobre “as dificuldades da condição infantil nas mais diversas regiões”. O Brasil entrou no grupo seleto convidado a participar da iniciativa com a cineasta paulista Kátia Lund, co-diretora do documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles, e do longa-metragem de ficção Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles. O episódio dirigido por ela, Bilu e João, é a melhor tradução para o conceito de “crianças invisíveis” do título – as que existem, mas ninguém parece ver.
Bilu (interpretada por Vera Fernandes) e João (Francisco Anawake de Freitas) passam o dia circulando por São Paulo em busca de restos da sociedade de consumo – caixas de papelão, latas vazias, pregos e o que mais for possível vender. Com o dinheiro, ajudam a família e tentam concretizar um ou outro pequeno sonho. A jornada lhes custa a infância, mas os adultos diante dos quais desfilam ou com quem conversam dão a impressão de não notar isso. Pior do que um país cujas crianças precisam trabalhar, sugere o filme, é aquele cujos adultos não se importam de ver crianças trabalharem. Embora a denúncia seja dura, Bilu e João trata seus personagens com leveza e alguma poesia, sem transformá-los em mártires ou heróis.
 
Todas as Crianças Invisíveis traz ainda o bósnio Emir Kusturica (Underground – Mentiras de Guerra) falando de crianças ciganas em Blue Gipsy, o americano Spike Lee (Faça a Coisa Certa) batendo firme no drama da AIDS em Jesus Children of América, o inglês Ridley Scott (Blade Runner, Gladiador) e sua filha Jordan examinando a chaga da guerra em Jonathan, o argelino Mehdi Charef apresentando as crianças armadas da África em Tanza e o chinês John Woo (Missão Impossível 2) explorando as diferenças de classe em Song Song e Little Cat, além do co-produtor Veneruso, que ambienta Ciro na periferia de Nápoles.
Talvez o cartão de crédito que tudo compra possa ajudar quem precisa e, adquirindo ingressos em nome do patrocinador da Mostra, consiga engordar a receita de Todas as Crianças Invisíveis.

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