Cinema Social – O primeiro tema, o mais importante

Cinema Social – O primeiro tema, o mais importante


Durante o trabalho de captação de recursos para a realização de “Pro Dia Nascer Feliz”, o cineasta João Jardim (co-diretor, com Walter Carvalho, de “Janela da Alma”, êxito de bilheteria e de estima) conta que ouviu muitas negativas de potenciais investidores. Até aí, nada que todo produtor cultural já não esteja acostumado a enfrentar. O problema, no entanto, era a natureza da objeção. Muita gente, segundo Jardim, lhe dizia que aquele não era tema que justificasse um documentário; que não havia ali relevância ou interesse.
Seria o caso de perguntar a esses iluminados — nas mãos dos quais, flagrante paradoxo, estão as verbas que, por meio das leis de incentivo fiscal, permitem que boa parte de nosso cinema, teatro e artes plásticas existam — o que, então, seria matéria-prima para um filme no Brasil dos anos 2000. Com o entusiasmo dos que mantêm a certeza de ter abraçado a causa certa, Jardim lembra sem rancor as negativas, mas ainda permanece um tanto surpreso. Acredita que o tema de seu filme é “o” tema a ser discutido no país. O primeiro e mais importante, sem o qual não se avança na resolução dos demais.
Não está sozinho, a julgar pela excelente resposta a “Pro Dia Nascer Feliz” em seu lançamento nos cinemas, no final de janeiro. Como o circuito exibidor brasileiro alcança hoje uma diminuta parcela da população, o filme será uma exclusividade dos moradores das principais capitais até o lançamento em DVD, previsto por Jardim ainda para o primeiro semestre. Só então, com a possibilidade de ser visto em todo o país, poderá fomentar, de escola em escola e de família em família, o debate nacional em torno de dois assuntos capitais que se entrelaçam: o sistema educacional brasileiro e os jovens para os quais ele é dirigido.
No início do documentário, tem-se a impressão de que haverá apenas uma análise da escola pública. Se fosse isso, já seria o bastante. Exceto pelos profissionais que conhecem esse cotidiano porque são obrigados a trabalhar nele, o que se revela é uma circunstância inaceitável que permanece desconhecida ou ignorada: no atacado, o sistema educacional brasileiro não funciona. Equivale a uma montadora de veículos que, ao final da linha de produção, entregasse ao mercado carros que não andam, em imagem usada por Jardim depois de conhecer o dia-a-dia de muitas escolas. Crianças e jovens saem dali sem aprender o instrumental mínimo que permitirá a eles lutar pela melhoria das condições de vida.
A situação cria, evidentemente, uma nuvem de angústia sobre todos os que notam a gravidade do cenário em que estão inseridos. “Pro Dia Nascer Feliz” dá conta disso ao ouvir tanto professores quanto alunos, muitos dos quais traduzem com felicidade, em frases sem rodeios e palavras doloridas, o beco sem saída para onde a escola pública vem caminhando há décadas. Algumas estatísticas contribuem para sublinhar os contornos do desenho trágico que o filme permite entrever: 13,7 mil escolas brasileiras não têm banheiro e 1,9 mil não têm água; 41% dos alunos que ingressam no ensino fundamental não concluem a oitava série. Estranho seria se os carros saídos dali fossem capazes de andar.
Apresentado o quadro, o documentário de Jardim vai aos poucos se concentrando em material muito mais rico do que críticas e reclamações: o perfil do jovem que está no ensino médio, na escola pública e também na escola privada. Perfil que nasce da corrente de depoimentos organizada pela montagem, sem que haja outra espécie de intervenção. Dezenas de adolescentes falam uns dos outros, de si mesmos, do cotidiano escolar, dos papéis que desempenham nele e do que mais lhes vem à mente. Essa trilha confessional tem, entre outros, o mérito de refrescar a memória dos adultos que por acaso já se esqueceram de como eram quando jovens.
A convergência entre os dois temas, a escola e a juventude, atribui a “Pro Dia Nascer Feliz” a proeza inédita de, em apenas uma hora e meia de filme, condensar os grandes dramas do sistema educacional brasileiro. Quem formula suas políticas, nos gabinetes públicos, não tem idéia do que ocorre ali diariamente. A sociedade, por sua vez, mantém indiferença criminosa, como se o problema não lhe dissesse respeito – rir ou chorar de pesquisa recente segundo a qual os pais estão “satisfeitos” com o que a escola oferece a seus filhos?
Por fim, e talvez mais importante: aferrada a uma estrutura autoritária, que trata o conhecimento de forma estanque, sem que os alunos desenvolvam meios para entender as conexões entre o que estudam e o mundo, a escola de ensino médio desconhece a natureza psicológica de quem está sentado na carteira. Para a maior parte dos professores e demais profissionais da carreira educacional, os adolescentes são esfinges a lançar, aula após aula, um enigma sem resposta: por que você não consegue nos ensinar? Ou: por que não conseguimos aprender?
O pequeno recorte do universo registrado em “Pro Dia Nascer Feliz” sugere que, em decorrência desse impasse quanto à função primeira do sistema educacional, professores e alunos acabam por se encarar como se fossem antagonistas. Escolas se tornam, assim, espaço de conflito onde uns acreditam enfrentar os outros, e a mera sobrevivência, de ambas as partes, já corresponde a uma vitória. Ensinar e aprender fica para depois – e o depois, como se sabe, não chega jamais. Sem que ninguém suba no palanque para dizer isso, o filme de Jardim aponta caminhos a partir da constatação de que estão todos no mesmo barco – o de um país que não pode ter futuro razoável se trata assim quem será responsável por ele.
Se esse não for tema relevante, qual será?
*Sérgio Rizzo é jornalista, mestre em Artes e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, crítico da “Folha de S. Paulo” e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

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