Cinema Social – Quanto vale um ser humano?

Cinema Social – Quanto vale um ser humano?

Em “Quanto Vale ou é Por Quilo?” (2005), o cineasta Sérgio Bianchi observa com ironia a atuação de organizações do Terceiro Setor no Brasil. A mercadoria a que se refere o título é a população pobre, transformada por alguns personagens do filme, representantes da elite predatória nacional, em negócio como qualquer outro, ainda que revestido de aura samaritana.
A generalização operada por Bianchi gerou intensa polêmica à época do lançamento. Não se pretende aqui retornar a ela, mas apenas à imagem que o título encerra. No modelo capitalista, ser humano tem valor de tabela? Comprá-lo por quilo proporciona desconto? O certo é que, de acordo com essa leitura radical da desigualdade social brasileira, poucos estariam nesse “mercado” como compradores; a maioria só tem o que vender.
O que talvez pareça somente metáfora adquire, em duas novas (e bem-sucedidas) produções nacionais recentes, correspondência concreta e cotidiana, a partir da qual se pode examinar a sociedade brasileira. “O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia, e “O Céu de Suely”, de Karim Aïnouz, não se apresentam como filmes “sociais”, cujo objetivo primeiro é discutir o país. Ao contrário: são intimistas, concentrados no perfil psicológico de seus protagonistas.
Mesmo assim (ou, em certo sentido, por causa precisamente dessa opção), criam universos ficcionais muito ricos para o debate de temas sociais. Em “O Cheiro do Ralo”, que obteve o prêmio de melhor filme pelo júri internacional na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, com estréia prevista no circuito comercial para março de 2007, Selton Mello (também co-produtor) faz o papel de Lourenço, o repugnante (mas, por outro lado, frágil e solitário) personagem central.
O negócio de Lourenço é a cara do Brasil: uma loja decadente, instalada em um galpão antigo, que compra e vende objetos usados. Todos os dias, a secretária e o segurança (interpretado pelo cartunista Lourenço Mutarelli, autor do livro que inspirou o argumento) organizam na sala de espera um pequeno batalhão de gente esquisita ou depauperada (às vezes, ambas as coisas) que aparece por ali para vender, em troca de 10 ou 20 reais, os mais diversos artigos – muitos com significado afetivo, mas que, agora, precisam virar dinheiro.
Lourenço os trata, de maneira geral, com desprezo. Vale-se da situação de dificuldade que leva a maioria deles até lá para barganhar o preço das mercadorias ou simplesmente descartar qualquer interesse por elas. Acostumado a avaliar o preço das coisas e a acreditar que a maioria delas têm alguma liquidez, sonha fazer uma oferta por certa parte da anatomia da garçonete que trabalha na lanchonete onde almoça, e pela qual (a parte da anatomia, não a garçonete) está obcecado. Não tem mais sentimentos, respeito ou auto-respeito; a proposta que faz à moça não a confunde com uma prostituta, mas com mais uma “coisa”, num mundo bruto em que todos parecem ter etiqueta pendurada no pescoço (e muitas delas, como gostam tantos lojistas brasileiros, com o carimbo de “sale”, o que os mais velhos chamavam de “liqüidação”).
Em “O Céu de Suely”, que recebeu os prêmios de melhor filme, diretor e atriz (a estreante Hermila Guedes) na seção Première Brasil do Festival do Rio, a protagonista — batizada com o mesmo nome da atriz – volta para a cidade natal, Iguatu, no interior do Ceará. Fugiu de lá em companhia do namorado, com quem viveu em São Paulo por algum tempo e teve um filho. Novamente instalada na casa da avó (a ausência de informações sobre pai e mãe sugere que eles não existem), Hermila espera pela chegada do marido, que prometeu ir para Iguatu dentro de um mês, com uma copiadora de CDs e DVDs, para montar uma barraca de produtos piratas na praça central da cidade.
Nada sai conforme o esperado, levando a jovem, na tentativa atabalhoada de arrumar dinheiro suficiente para comprar uma casa, a pensar em uma rifa cujo prêmio é “uma noite no paraíso”, ou seja, com ela. Não se trata, mais uma vez, de confundir o gesto com prostituição, embora parte dos moradores da cidade assim o encare. Hermila poderia muito bem trabalhar como garota de programa, a exemplo de uma amiga, mas resiste à tentação. Ao chegar a Iguatu, já havia promovido a rifa de uma garrafa de uísque para levantar alguns trocados. É também um processo de “coisificação” que a conduz à solução extrema de ingressar no mercado consumidor com o próprio corpo como moeda de troca.
“O Céu de Suely” oferece ainda a oportunidade de compreender melhor, via ficção, um fenômeno social brasileiro, tristemente comum: a pulverização de famílias. Ao final, o núcleo de Suely se divide em três partes – uma no Sul, outra no Sudeste e a terceira no Nordeste. Seria muito razoável imaginar que talvez elas nunca mais se encontrem, como de fato ocorre a milhares de pessoas.
A situação estabelece, não por acaso, ponte com uma produção chinesa premiada com o Leão de Ouro de melhor filme no recente Festival de Veneza (e que foi exibida na Mostra de São Paulo): “Natureza Morta”, de Jia Zhang-Ke. As duas histórias paralelas alinhavadas pelo filme tratam de desintegração familiar, provocada simultaneamente por um evento específico – a construção de uma enorme usina hidrelétrica na região de Três Gargantas, a inundação de diversas cidades e a migração obrigatória de milhares de pessoas – e por um evento de caráter permanente, para a China e o Brasil: o gigantismo do país.
Gigantes que, no cinema, muitas vezes se permitem conhecer melhor assim, graças a um foco lançado sobre microcosmos, como em “O Cheiro do Ralo”, “O Céu de Suely” e “Natureza Morta”.
*Sérgio Rizzo é jornalista, crítico da “Folha de S. Paulo” e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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