Por Sérgio Rizzo
A parcela mais numerosa dos documentários tem o objetivo de investigar fatos e personagens do passado ou explorar aspectos já consolidados do presente. Nesses casos, o trabalho dos realizadores se assemelha ao de pesquisadores; o tema do filme é um objeto de pesquisa relativamente “sob controle”, concreto e esquadrinhado (ainda que sujeito a novas explorações).
Uma vertente significativa da produção documental contemporânea prefere se ocupar, no entanto, de “temas em movimento”. São filmes, de curta e longa-metragem, que acompanham desde o início projetos ou jornadas cujo final é imprevisível. Em tais situações, os realizadores se assemelham a testemunhas (ou mesmo coadjuvantes, em alguns episódios) do que “nasce” em frente às câmeras. O eventos e o documentário que os registra se constituem, muitas vezes, em um corpo único.
Ótimo exemplo dessa segunda vertente, a das apostas no desconhecido, é Lixo Extraordinário, já disponível em DVD no Brasil. Realizado ao longo de três anos pela diretora Lucy Walker e pelos codiretores Karen Harley e João Jardim (que assinou Janela da Alma e Pro Dia Nascer Feliz), o filme usou como ponto de partida o desejo do artista plástico brasileiro Vik Muniz, radicado nos Estados Unidos, de “mudar a vida de pessoas” usando o mesmo material com o qual elas lidam no cotidiano para sobreviver.
Muniz desenvolveu uma ideia que se adequasse à sua intenção e, em seguida, a propôs a catadores de lixo do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ). O projeto consistia em transformar alguns deles – homens e mulheres de diversas faixas etárias – em coautores de painéis fotográficos que combinavam suas imagens com materiais recolhidos no aterro sanitário onde trabalham, um dos maiores do mundo.
Uma vez que a proposta foi aceita pelos interessados, projeto artístico e filme passaram a caminhar juntos. Lixo Extraordinário acompanha essa história incomum até o final, que poderia ser frustrante, mas calhou de ser feliz. Concluídas após intenso processo colaborativo, as obras coordenadas por Muniz e produzidas pelos catadores de lixo ingressaram no circuito convencional das artes visuais, participando de exposições e de leilões. Alguns dos coautores tiveram a oportunidade de viajar com os painéis e assistir à acolhida (muito positiva) do trabalho no exterior.
Além de colecionar prêmios do público em festivais internacionais, como os de Berlim (Alemanha) e Sundance (EUA), e de disputar o Oscar de melhor documentário de longa-metragem no início deste ano, Lixo Extraordinário contribuiu, de fato, para o que desejava Muniz no início da jornada. A vida dos participantes do projeto mudou graças a algo feito a partir do material que lhes cercava no dia a dia – resíduos da sociedade de consumo que puderam adquirir novo sentido por meio da arte e de uma empreitada coletiva. O documentário entrou nessa história para que ela pudesse ser contada e multiplicada, mas ele, o filme, também a protagonizou.
Sérgio Rizzo é jornalista, crítico de cinema e professor
www.sergiorizzo.com.br