Entrevistas – Buscando a beleza na força que se opõe à injustiça social e à opressão (parte 1)

Entrevistas – Buscando a beleza na força que se opõe à injustiça social e à opressão (parte 1)

Uma das primeiras respostas da cineasta Kátia Lund na entrevista que se segue não deixa nenhuma dúvida em relação aos temas sobre os quais gosta de se debruçar na hora de escolher seus filmes. “A realidade da opressão é a minha matéria-prima. Mas não é só ela que me interessa. Interessa-me o espírito humano que supera a adversidade. Procuro encontrar beleza na força dentro da injustiça.”
E quem há de discordar da cineasta tendo visto filmes que co- dirigiu, como Notícias de Uma Guerra ParticularPalace II e o aclamado Cidade de Deus? Ou, mais recentemente, Crianças Invisíveis, em que conta a história de Bilu e João, pequenos catadores de lixo do mundo globalizado que lutam para preservar seus sonhos no cenário hostil da cidade de São Paulo? Para Kátia, cinema é uma forma de tentar compreender a realidade a partir de ” diferentes modos de olhar”. Nesse sentido, o uso que faz de sua arte tem a mesma “dimensão sociológica” que o escritor norte-americano Gay Talese atribuiu ao seu ofício de escrever. A comparação com Talese é proposital, embora os dois utilizem linguagens diferentes.
Como o autor de A Vida de Um Escritor (a ser lançado no Brasil), Kátia faz ficção sem nunca desgrudar o olho da realidade que a cerca. Como o ex-repórter doNew York Times, a cineasta gosta de trabalhar com personagens de carne e osso, guerreiros que não desistem nunca e cujas histórias não se encontram nos lugares aparentemente mais óbvios. Como o escritor que Tom Wolfe considera o “pai do novo jornalismo”, ela tem um senso de honra e integridade profissionais, abomina a neutralidade tão ao gosto dos céticos, gasta muito tempo de “pesquisa” ouvindo o que pensam seus personagens, respeita-os como indivíduos e envolve-se com a vida deles antes, durante e depois das filmagens. É isso o que o leitor de Idéiasocial verá nesta entrevista especial.
Idéiasocial: Os filmes que você dirigiu ou co-dirigiu, especialmente Cidade de DeusNotícias de Uma Guerra Particular, e mais recentementeCrianças Invisíveis, têm uma evidente preocupação com a realidade social do país. Como e quando começou o interesse pelas temáticas da opressão e da desigualdade?
 
Kátia Lund: Essa pergunta sempre me pega despreparada. Não sei dizer com precisão de onde vem esse interesse. Mas sempre que penso no assunto, não consigo deixar de lembrar da minha família, da educação que tive, dos valores que desenvolvi. Em casa aprendi, desde cedo, o valor da igualdade, do respeito ao outro e do servir. Aprendi a olhar o outro como igual. Os empregados da casa de meus pais trabalharam lá por 40 anos. Convivi com eles minha vida toda e estive junto deles até no momento em que morreram. Nunca os vi como subalternos, mas como amigos.Tínhamos condições privilegiadas, mas meus pais norte-americanos se esforçavam para desenvolver esse valor: a gente só ganhava mesada, por exemplo, se colocasse e tirasse a mesa com os empregados.
Desde criança, gostei de escrever. Em casa, todos fomos influenciados pelo meu pai que sempre escreveu muito bem. E, na adolescência, como gostava de textos, li muitos livros, como por exemplo Malcom X. Interessava-me já, desde cedo, a questão da auto-expressão, as histórias de gente que lutou contra a opressão e que precisou se articular para atingir seus objetivos sociais.
Com 15 anos, fui fazer três cursos de verão nos EUA. Um era de arte, outro de narrativa e o terceiro chamava-se Liderança e Sociedade. Nem imaginava que um dia viria a fazer cinema. E já me sentia encantada pela idéia de aprender como os indivíduos conseguem transformar as suas sociedades.
IS: Você é uma mulher branca de classe média, filha de pais norte-americanos, já viveu em vários países e vem de uma realidade social muito diferente da que aborda em seus filmes, clipes musicais e documentários. Por que o interesse pela opressão?
 
 
KL: A opressão é um tema que me incomoda bastante. A desigualdade me perturba. Acho desconfortável conviver com isso no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. É como ir a uma festa na qual você é o único convidado que está bem. A maioria das pessoas coloca filtros para não ter de enxergar a desigualdade. E para evitar a sensação de que ela é desagradável e de que somos impotentes diante de sua força. Qualquer pessoa de boa vontade sabe que a desigualdade é injusta. Todos nós, pobres e ricos, brancos e negros, nascemos com a mesma inteligência e a mesma vontade de crescer. Incomoda-me o fato de que, para os pobres e os negros, as possibilidades são limitadas.
O cinema pode ser várias coisas. Para muita gente, é um ponto de fuga. Para mim, é um instrumento para tentar compreender e enxergar de outra forma a vida. É uma espécie de espelho que abre um novo caminho de pensamento. Por isso, faço o cinema que gosto de ver. E abordo os temas que me desconfortam, até que esgote o que tenho para expressar sobre eles. Um dia o tema do tráfico já me interessou muito. Mas penso que já disse tudo o que precisava dizer sobre isso. De qualquer modo, a realidade da opressão continua sendo minha matéria-prima. Mas não é só ela que me interessa. Interessa-me o espírito humano que supera a adversidade. Procuro encontrar beleza na força dentro da injustiça e da opressão.
IS: Talvez por causa dessa forma, digamos, visceral de lidar com as realidades apresentadas em seus filmes, e também pelo fato de que costuma trabalhar com gente comum, que não é ator, você estabelece uma relação muito intensa com os seus personagens e com os intérpretes deles? Como é essa relação?
 
 
KL: O que me interessa é a realidade. E a realidade só existe a partir do olhar de cada pessoa. O ponto de partida no meu trabalho é justamente a busca de outros modos de olhar. E para sentir a realidade a partir do ponto de vista dos personagens preciso me colocar na pele deles, ver como enxergam o mundo. Por isso, dependo muito da abertura das pessoas, de que elas me aceitem, se abram comigo e falem de suas vidas. Para desenvolver uma melhor compreensão da realidade que pretendo retratar, começo sempre com pesquisa. Impossível, portanto, não me envolver com os personagens. A minha relação é de confiança e respeito. Por isso, as pessoas se abrem. Vou contar uma história que exemplifica isso. Quando fui convidada a filmar Crianças Invisíveis, pensei em, de alguma forma, mostrar o trabalho digno dos catadores de lixo e a sua importância para a questão da reciclagem. Queria tratar do empreendedorismo, do jogo de cintura do brasileiro e da capacidade que ele tem de se virar mesmo diante das condições mais desfavoráveis. O meu primeiro contato com essa realidade foi curto e direto: estava dirigindo em São Paulo, vi um carroceiro na rua, me aproximei e comecei a lhe fazer perguntas sobre como catava o lixo e onde vendia o material coletado. Esse tipo de conexão funciona porque chego de coração aberto, sem reservas, disposta a ouvir o ser humano com respeito, numa relação horizontal. O primeiro carroceiro me levou até um grande posto de reciclagem, onde conheci uma senhora que se propôs a me ajudar na minha tarefa de tomar contato com o mundo dos catadores de lixo. Disse-lhe que estava fazendo um filme. E que desejava saber se havia criança trabalhando naquela função. Ela então me apresentou o filho, Leonardo, de 12 anos, que trabalhava com ela desde os sete anos. Alguns minutos depois, estava pegando ônibus com a mulher. Quase duas horas mais tarde, estava em sua casa muito simples, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, ouvindo suas histórias, conhecendo suas alegrias e seus medos. Aquela mulher foi o meu primeiro elo com o mundo dos catadores de lixo. E não poderia ter sido melhor.
IS: Esta não foi certamente a primeira vez que você conheceu in loco a realidade de uma favela. Antes até de Cidade de Deus você já tinha feito um clipe com o Michael Jackson, na favela Santa Marta, no Rio…
 
 
KL: No clipe do Michael Jackson subi pela primeira vez a uma favela carioca. Mas em São Paulo, onde nasci, já visitava favelas desde criança. Tínhamos o hábito de tomar café da manhã na casa do empregados. Nunca vi, portanto, a favela como um universo à parte, com seus próprios códigos e ordem.
Uma pergunta comum de jornalistas e policiais é como faço para entrar nas favelas onde são ambientados os meus filmes. Os jornalistas a fazem por achar estranho que uma mulher ruiva e de olhos azuis se mostre à vontade num ambiente em princípio incompatível com a sua origem de classe média alta. Os policiais me interrogam para saber se tenho envolvimento com o tráfico, se negociei o meu acesso fácil com uma facção criminosa ou onde obtive as armas usadas pelos atores. A segregação é uma marca de nossa cultura. Para alguns policiais já respondi: ‘Precisa de passaporte para entrar numa favela?’ Para mim, é chocante ver um policial na beira de uma favela, cobrando a apresentação de documento como se as pessoas estivessem passando de um país para outro. Tem uma história que me marcou muito. Foi em 1996, na favela do morro Santa Marta, pouco antes das filmagens do clipe do Michael Jackson. Havia lá um menino de 18 anos, o João, energético e prestativo, que era meu braço direito na produção. Pedi-lhe que fosse buscar um martelo. E ele desceu o morro, de calção e chinelo, com brilho nos olhos, sentindo-se útil. Quando dobrou uma esquina, deu de cara com um grupo de policiais que passou a humilhá-lo. A luz que possuía se apagou. Sem poder reagir, anulou-se, virou ninguém. Nunca tinha visto nada parecido no meu mundo classe média. Diante da cena não me contive e fui defender o garoto. Um dos guardas atacou: “O que você está fazendo aqui?” Respondi que trabalhava na produção de um clipe. E ele contra-atacou: “Eu também sou pago para fazer o meu trabalho”. Na hora, um muro caiu sobre a minha cabeça. Percebi que o sujeito tinha razão, eu pagava impostos para ele fazer o seu trabalho, era parte daquela realidade e, de alguma forma, cúmplice da situação. Com 29 anos, comecei a refletir sobre o quanto eu desconhecia o País onde nasci. E sobre o meu papel na mudança da realidade de que sou parte. Essas reflexões foram decisivas para o meu trabalho em Notícias de Uma Guerra Particular (1999), Palace II (2000) e Cidade de Deus (2002).
IS: Voltemos a falar sobre o modo como você descobre os seus atores entre pessoas comuns e a forte relação estabelecida com eles, antes, durante e após as filmagens. Como você conheceu o João e a Bilu, meninos catadores de lixo da cidade de São Paulo que são os protagonistas do filme Crianças Invisíveis?
 
 
KL: Para montar o casting, eu e Fátima Toledo iniciamos um trabalho de pesquisa de atores na periferia de São Paulo. Com base na experiência da ONG Nós do Cinema, que tinha ajudado a criar, achei que deveríamos procurar meninos ligados a alguma ONG. E assim fizemos. Mas enquanto trabalhávamos na periferia, colocamos um pesquisador no centro da cidade. Olhando o material de pesquisa do centro e os testes dos meninos de ONGs, percebemos que havia diferenças importantes. Os de ONG eram quase mauricinhos, assistiam TV o dia todo, jogavam vídeo game e mal sabiam atravessar uma rua. Os testes do centro identificaram a Verinha (Vera Fernandes, que interpreta Bilu) e o Anawake (Francisco Anawake, que faz o papel de João). Os dois foram encontrados na rua 25 de Março, perto do Mercado Municipal. Primeiro, vimos a Verinha, que tinha 11 anos e brincava entre carroças estacionadas ao lado de um prédio invadido. Quando o pesquisador chegou com uma câmera digital e perguntou se podia filmar, ela consentiu. E, muito dona de si, mostrou-se marrenta, cheia de atitude. Ninguém mandava nela. Sabia quem ela era. O nosso pesquisador foi também na 25 de Março. E lá encontrou uma senhora de 60 anos, brava e muito forte, que tinha um acordo de receber o papelão das lojas de dois quarteirões. Era a mãe do Anawake, de 12 anos, que, num primeiro momento, conhecemos apenas por uma foto. O olhar expressivo do menino chamou a atenção. As primeiras imagens de vídeo confirmaram o que pensávamos: ao ser interrogado se ajudava a mãe no trabalho de catar papelão, ele respondeu firme que não, que tinha a sua própria carroça, uma imaginária Ferrari. Incorporei essa idéia na história, para mostrar o quanto ele misturava trabalho e brincadeira. Durante dois meses, eu a Fátima trabalhamos com os meninos das ONGs. Mas a Verinha e o Anawake se destaracam demais. E acabaram selecionados.
A situação de vida dos dois era muito precária. Viviam em prédios invadidos. Durante a filmagem e, mesmo depois, procurei apoiá-los da melhor forma possível. Consegui, com a ajuda dos produtores italianos, uma casa e uma tutora para a Verinha. E hoje ela está bem, recuperando o atraso escolar e fazendo computação à tarde. Depois do filme, o Anawake brigou com a mãe. E foi morar com o pai, na periferia de São Paulo, num lugar onde só tem escola pública. É bom aluno. Mas não há nenhuma ONG, nenhum SESC ou outra organização oferecendo esporte, teatro, arte e computação. O estudo é muito limitado. Os dois são superinteligentes. Estão naquela idade em que podem fazer tudo. Mas se ficarem num lugar sem estímulo, vão voltar a ter o olhar apagado de muitos meninos que vivem na pobreza. O potencial será desperdiçado. Essa é uma questão colocada no plano final do filme: para onde irá a energia criativa desses meninos se o objetivo de construir o seu espaço não der certo?
IS: Considerando que não são atores e, portanto, não têm nenhuma intimidade com a arte de representar, o que você procura nesses meninos? Atitude, autenticidade, cumplicidade com os temas?
 
 
KL: Procuro uma mistura de talento com auto-estima elevada, desenvoltura e sensibilidade. Para mim, talento, nesse caso específico, é a capacidade de se expressar com verdade. O que tento fazer subconscientemente é enxergar o valor onde não se costuma ver valor. Não quero, claro, pessoas apagadas, que já se sentem derrotadas. Procuro o lutador, o guerreiro. Vou te dar um exemplo. Quando conheci o Acerola e o Laranjinha ocorreu algo interessante. Eles tinham 11 anos. No primeiro teste do Douglas (Silva), que fez o Acerola, meu olho imediatamente grudou nele. Vi naquele garoto atitude, brilho, peito estufado e forte imaginação. Vi concentração, foco e entrega ao trabalho. Mas acima de tudo, Douglas mostrou que tem o desejo. No primeiro dia das filmagens do piloto da série Cidade dos Homens, chamado Palace II, ele e a mãe se perderam no caminho para a Cidade de Deus. Quando percebeu que estava se atrasando, desabou em prantos, pois queria chegar logo e trabalhar. Isso é desejo. Procuro essa matéria-prima.
Há um tempo atrás, vi uma atriz da Globo abraçada ao Douglas, dizendo mais ou menos o seguinte: “Na próxima vez que chegar um menino como este num semáforo, abaixe o vidro porque ele provavelmente não vai te pedir nada mas te dar um autógrafo.” Isso pode parecer bacana. Mas na verdade reforça o preconceito. Nenhum desses meninos precisa de gente famosa validando o seu trabalho. Eles não são pobres coitados. São talentosos. Qualquer pessoa que veja Cidade dos Homens com olhos atentos perceberá o quanto são talentosos. Sempre me incomodou o fato de eles nunca serem reconhecidos por seu talento. Mas por terem vindo da miséria, por serem uma espécie de sobreviventes do mundo da desigualdade.

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