Entrevistas – Buscando a beleza na força que se opõe à injustiça social e à opressão (parte 2)

Entrevistas – Buscando a beleza na força que se opõe à injustiça social e à opressão (parte 2)

IS: Considerando que não são atores e, portanto, não têm nenhuma intimidade com a arte de representar, o que você procura nesses meninos? Atitude, autenticidade, cumplicidade com os temas?
 
KL: Procuro uma mistura de talento com auto-estima elevada, desenvoltura e sensibilidade. Para mim, talento, nesse caso específico, é a capacidade de se expressar com verdade. O que tento fazer subconscientemente é enxergar o valor onde não se costuma ver valor. Não quero, claro, pessoas apagadas, que já se sentem derrotadas. Procuro o lutador, o guerreiro. Vou te dar um exemplo. Quando conheci o Acerola e o Laranjinha ocorreu algo interessante. Eles tinham 11 anos. No primeiro teste do Douglas (Silva), que fez o Acerola, meu olho imediatamente grudou nele. Vi naquele garoto atitude, brilho, peito estufado e forte imaginação. Vi concentração, foco e entrega ao trabalho. Mas acima de tudo, Douglas mostrou que tem o desejo. No primeiro dia das filmagens do piloto da série Cidade dos Homens, chamado Palace II, ele e a mãe se perderam no caminho para a Cidade de Deus. Quando percebeu que estava se atrasando, desabou em prantos, pois queria chegar logo e trabalhar. Isso é desejo. Procuro essa matéria-prima.
Há um tempo atrás, vi uma atriz da Globo abraçada ao Douglas, dizendo mais ou menos o seguinte: “Na próxima vez que chegar um menino como este num semáforo, abaixe o vidro porque ele provavelmente não vai te pedir nada mas te dar um autógrafo.” Isso pode parecer bacana. Mas na verdade reforça o preconceito. Nenhum desses meninos precisa de gente famosa validando o seu trabalho. Eles não são pobres coitados. São talentosos. Qualquer pessoa que veja Cidade dos Homens com olhos atentos perceberá o quanto são talentosos. Sempre me incomodou o fato de eles nunca serem reconhecidos por seu talento. Mas por terem vindo da miséria, por serem uma espécie de sobreviventes do mundo da desigualdade.
IS: Historicamente, sob uma lógica classe média do Leblon, os meninos negros de favela são sempre retratados como marginais e coadjuvantes. Nunca como protagonistas. Isso te incomoda?
 
 
KL: No início da série Cidade dos Homens, um jornalista me perguntou: “Quantos filhotes o Cidade de Deus vai ter? Esse universo da favela já não se esgotou?” Minha resposta foi a seguinte: ” Malhação já não se esgotou? O universo classe média das novelas já não se esgotou?” O que acontece é que, enquanto o protagonista for branco de classe média, realmente a história do negro não vai encaixar. Ele será sempre o secundário, o coadjuvante, o motorista. Mas se o foco for o motorista, o coadjuvante será o branco. É uma mudança de olhar. A grande novidade no Cidade deDeus foi dar papel de protagonistas a atores de comunidades pobres. Sempre se botou gente de classe média para fazer papel de pobres. E ninguém compra porque é falso. O gestual, a linguagem e o olhar são falsos. Fica uma coisa esquisita, um esculacho. Há algum tempo, se dizia que pobre não gosta de ver pobre, mas de ver luxo. Não é bem assim: pobre não gosta de se ver da forma como normalmente é retratado. Como alguém vencido, rendidos às mazelas de sua vida e à criminalidade. Ou alguém bobão e ingênuo. Raramente se mostra o pobre como um lutador que sabe viver a sua vida com 300 reais, que tem inteligência para entender o mundo que vive e lutar, a seu modo, contra a opressão.
IS: Sua intensa relação com os atores de Cidade de Deus a levou a criar uma ONG, chamada Nós do Cinema. Como foi essa experiência?
 
KL: A idéia de criar uma ONG é anterior a Cidade de Deus. Mas foi implantada após o filme. Já tinha o sonho de criar uma organização para fazer o intercâmbio de jovens ricos da Escola Santo Inácio, no bairro de Botafogo, com os pobres da favela Santa Marta. Estão uns ao lado dos outros. Mas não se conversam. E eu achava o cinema perfeito para fortalecer uma relação horizontal. O cinema é um trabalho de equipe, todo mundo é necessário e o que vale na hora é o que você traz, não sobrenomes.
Mas antes vale contar como tudo começou no Cidade de Deus. Ao contrário do que se costuma fazer na montagem de elencos, não iniciamos com testes. Essa foi uma condição que tratei com Fernando (Meirelles) para escalar o elenco e co-dirigir o filme. Primeiro, anunciamos nas favelas a abertura de um curso gratuito de atuação para cinema. Dissemos que seriam dados vale-transporte, lanche e diploma. Esse era nosso único compromisso. Quando receberam o diploma, avisamos que quem quisesse poderia fazer um teste para um longa metragem. Não queríamos estimular a competição entre eles, mas explorar a energia coletiva do grupo. Trabalhamos com os meninos durante oito meses. Com essa base, eles ficaram mais preparados para exercitar as cenas específicas com a Fátima Toledo ao longo de oito semanas.
IS: Você queria manter o grupo organizado e produtivo? Este foi o seu objetivo ao criar a Nós do Cinema?
 
KL: Quando terminaram as filmagens, procurei o Fernando e lhe disse que precisávamos fazer algo para manter a união deles. Isso foi no final de 2001. Mas ele tinha outros planos. Apenas o Darlan (Cunha) e o Douglas (Silva) estavam contratados para fazer Cidade dos Homens. Então decidi criar a ONG Nós do Cinema (o nome é uma homenagem a Nós do Morro, uma escola de atuação criada pelo ator Guti Fraga, na favela do Vidigal, de onde saíram alguns dos atores de Cidade de Deus, como o Bené, o Cabeleira e a Berenice) para que os meninos aprendessem outras coisas, como desenvolver uma idéia, fazer orçamento, produzir, filmar e editar. A ONG era um pretexto para mantê-los unidos e organizados. Não havia dinheiro. Então combinei de nos reunirmos aos sábados, na Fundação Progresso, para fazer dois curtas metragens, já que equipamentos e gente para dar aulas eu conseguia arrumar. E assim fizemos. Foi uma experiência rica para eles. No final daquele ano, tive de viajar para o Oscar e por causa de uma bolsa de trabalho numa universidade norte-americana. Abri uma conta, alugamos uma sala e começamos a pagar professor para eles. Quando voltei, não havia dinheiro para continuar as atividades, eu estava com muito trabalho e pouco tempo. Tinha passado um ano e meio desde a saída do Fernando e o fim da produção do filme. O Cidade de Deus havia sido exibido um ano antes, e estava há três meses em cartaz no exterior. Então convoquei o grupo e disse que se não captássemos os recursos necessários, a ONG poderia acabar em dois meses. A reação deles foi surpreendente: ‘A gente entende que você tem que cuidar da sua vida, mas decidimos não deixar acabar o Nós do Cinema.’ A partir desse momento, assumiram o comando. Depois que se apropriaram da ONG, eles captaram os primeiros recursos com a Firjan, alguns investidores particulares, a distribuidora Lumiere, o Grupo Lund (editora de revistas) e o Fernando Meirelles, que investiu no aluguel do espaço e está cada vez mais envolvido nas atividades e expansão do grupo, tendo inclusive adquirido uma sede. A ONG deslanchou. Desde 2003, eles contam com patrocínio da Eletrobras, contratam professores, dão aulas para 150 pessoas, têm sete núcleos no Rio e estão abrindo um em São Paulo, viajam o mundo inteiro levando o seu trabalho. Faço parte do Conselho. Às vezes, ligo para combinar uma reunião e eles me dizem que não têm tempo para isso porque são muito ocupados (risos). Fiquei absolutamente desnecessária.
RV: À exceção de Cidade de Deus que alcançou um público maior, em virtude da indicação ao Oscar, seus filmes são vistos por platéias mais seletas que freqüentam o circuito cult das salas de cinema arte? De um certo modo, essas pessoas pensam um pouco como você a respeito da desigualdade e da opressão. Quando realiza os seus filmes, você pensa nesses espectadores, em provocar reflexão neles?
 
 
KL: Se o meu filme não entretém, se não é bem feito, não leva à reflexão. Quero fazer as duas coisas. Procuro prender o espectador, sem pregação. No íntimo, faço cinema para o público de favela. Tenho prazer quando as pessoas de comunidades pobres gostam de se ver na tela. E isso há muito tempo. O primeiro clipe que fiz foi do MV Bill, chamado Traficando Informação. Notícias de Uma Guerra Particular ainda não havia sido lançado. E eu sonhava em fazer um documentário sobre o rap, que sempre vi como algo guerreiro, de atitude e de auto-estima elevada. Com câmera e pontas de negativos doados pela Conspiração, e mais R$ 10 mil obtidos pelo Bill a partir da venda de coisas, consegui produzir um clipe legal, retratando o rap sem derrotismo. Eu era desconhecida. O Bill não tinha nem gravadora. Um dos momentos de maior orgulho que senti na minha carreira foi quando este clipe foi mostrado, pela primeira vez, na Cidade de Deus, num galpão de escola de samba, para uma grande platéia. As pessoas reagiram Às imagens delas. Viram-se como, de verdade, são. E se reconheceram no espírito guerreiro do filme, em grande medida porque a câmera na altura do olho das pessoas e a fotografia conferiam humanidade ao filme Quando o Cidade de Deus saiu, quis mostrar primeiro nas favelas. Mas não tive o apoio necessário.
Acho legal que o filme tenha virado cult e tenha sido visto por gente de classe média em cinema de arte. Mas não dá para mudar só as pessoas de classe média e alta para que elas mudem o Brasil. Quem tem que iniciar a mudança é quem vem de baixo.
IS: Quem te influenciou no modo de fazer cinema? Que leituras, relações e pessoas a levaram a pensar cinema do modo como você pensa?
 
 
KL: O cinema chegou tarde como idéia na minha vida. Estudei literatura comparada brasileira, francesa e inglesa na Brown University. Antes de entrar na faculdade, com 18 anos, eu já queria escrever romance. Desejava estudar culturas e escrever. Por isso, fui trabalhar por três meses na National Geographic. No terceiro ano de faculdade, decidi que queria viajar o mundo. Mas eu precisava de um bom motivo para convencer meu pai. E foi aí que li um anúncio no jornal que dizia o seguinte: ‘Estude cinema em seis países e more com famílias durante um ano’. O curso se chamava Cinema e Transformação Social. Convenci uma amiga brasileira, que estudava em Nova Iorque, a ir comigo. E ela topou. Passamos dois meses em cada País. Na Inglaterra, estudamos Alfred Hitchcock. Na Itália, tomamos contato com o neo-realismo. E lá, depois de ver Ladrões de Bicicleta (1948) e Roma – Cidade Aberta (1945), fiquei encantada com o trabalho de atores não profissionais em situações tão verdadeiras. Decidi que queria fazer cinema para retratar a realidade de determinados lugares. Tudo aquilo era o oposto de Hollywood. Estava envolvida com o cinema. Era uma escolha de estilo de vida.
No quarto ano de faculdade, fiz um curso de semiótica que também influenciou muito o meu modo de pensar. Lacan e Foucault me ajudaram a compreender como a linguagem pode conciliar culturas, construir realidades e determinar quem você é.
No cinema tem pessoas que foram importantes para mim. O Hector Babenco, com quem trabalhei em Brincando nos Campos do Senhor (1990), é um deles. Foi o meu primeiro longa metragem. Gosto do cinema de Babenco porque é visceral, envolve, provoca e mexe com a gente. O filme Pixote me marcou muito.
IS: Como você vê o papel da educação no Brasil?
 
 
KL: Educação é a base de tudo. Mas não adianta ter o tipo de educação que, de novo, ensina a segregação e a desigualdade. Aprendemos desigualdade o tempo inteiro. Boa educação é a que ensina a raciocinar, a questionar, a criar, a formar as próprias opiniões. Que ensina, por exemplo, a não ser subjugado pela televisão. Que ensina auto-estima. Educação é a grande chave para abrir portas. Quem pode ser feliz e viver bem sem saber ler, escrever e pensar? Veja a Internet. É ruim e boa. É ruim porque aumenta a diferença. Mas, ao mesmo tempo, num país como o Brasil, onde as escolas são maltratadas, um menino que saiba ler e tenha iniciativa, pode pesquisar o que quiser. Educação não é construir prédio. É investir em professores com vontade de lecionar e em métodos. Investir com paciência porque os resultados vão demorar um pouco pra aparecer. Educação não é só um problema do Estado. Os pais precisam se envolver mais na vida escolar dos filhos.
IS: Nos últimos anos, o Terceiro Setor e o movimento de responsabilidade social cresceram no Brasil, certamente como resposta da sociedade civil e das empresas à idéia de que todos – e não apenas os governos – somos responsáveis pela solução dos nossos problemas sociais. Você se sente mais confortável em viver num País em que os setores agem em sistema de co-responsabilidade?
 
 
KL: Sim, me sinto. A situação de miséria, de desigualdade e de tensão social do país nos dá razões de sobra para ficarmos deprimidos. Mas, ao mesmo tempo, percebo uma reação entre as pessoas, às vezes, mais lenta do que seria necessário. Por isso, acho importante abraçar os movimentos do bem que estão funcionando no Brasil. Quando, há pouco mais de dez anos, minha irmã começou a trabalhar em ONG, ela visitava empresas para falar de responsabilidade social e todo mundo achava bobagem. Dizia que aquilo não era prioridade. Hoje em dia muita gente já vê o tema como prioridade. Caminhamos sim. Há quem critique as ONGs, por seus defeitos. E certamente elas os têm. Mas acho que fazem um trabalho muito digno. Não vão resolver todos os problemas sociais do país, até porque a maioria deles exige mudanças estruturais e culturais. Mas as ONGs cumprem um papel importante na mudança.
Desde os tempos de estudante nos EUA, quando descobriu sua paixão pela sétima arte, até atualmente, com o lançamento de seu novo filme, Crianças Invisíveis, a cineasta paulistana Kátia Lund sempre esteve envolvida com temas ligados à pobreza no Brasil. Em 1996, participou da equipe de filmagens do polêmico videoclipe do cantor Michael Jackson, They don’t care about us, no morro Santa Marta, reduto do falecido traficante Marcinho VP. Essa experiência levou-a a escrever e co-dirigir com João Moreira Salles o documentário Notícias de Uma Guerra Particular, que concorreu ao Emmy de 1999. Dirigiu videoclipes de artistas como MV Bill e O Rappa, que receberam prêmios nacionais e introduziram uma linguagem cinematográfica e social no meio da música. Em 2000 inaugurou sua parceria como co-diretora ao lado do cineasta Fernando Meirelles no filme Palace II, que conta a história de dois meninos moradores de favela. Ainda nesse ano, impressionado com seu trabalho, Meirelles a chamou para um novo projeto: o aclamado filme Cidade de Deus (2002).

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