Entrevistas – O ex-ministro Rubens Ricupero aborda o impacto da desigualdade social na imagem do Brasil no exterior (parte 2)

Entrevistas – O ex-ministro Rubens Ricupero aborda o impacto da desigualdade social na imagem do Brasil no exterior (parte 2)

IS – Comparativamente, qual a eficácia de programas de transferência de renda e programas de geração de renda no combate à pobreza e quando cada um deve ser utilizado?
 
RR – Em alguns casos, os programas de transferência de renda são necessários, e em outros, até indispensáveis. Mas não vão à raiz do problema. São importantes quando tratam de segmentos que não têm nenhuma renda e que não terão possibilidades de ter, como pessoas muito idosas ou deficientes físicos e mentais de alta gravidade. O ideal, no entanto, é combiná-los com contrapartidas possíveis, como, por exemplo, as de mandar os filhos para a escola ou para os postos de saúde –isso tudo é investimento no futuro, as novas gerações devem ter condições de vida melhores que as anteriores. Se não houver perspectiva de continuidade, a tendência é que esses programas se perpetuem sem que gerem soluções efetivas. Um programa de transferência de renda é válido como medida emergencial, para resolver problemas imediatos, como os de alimentação, por exemplo: pessoas que não têm o que comer não têm forças para trabalhar. Exceto nesses casos extremos, nos quais sempre haverá necessidade de ajuda, os programas de transferência de renda precisam ser seguidos por programas de geração de renda. Na maioria dos casos, a contra-prestação precisa existir e ser viável. Não se pode, por exemplo, exigir que depois de um determinado período de recebimento dos benefícios do programa de assistência, o indivíduo esteja empregado numa região e numa situação em que o emprego não existe. É preciso ter bom senso na hora de estabelecer as contrapartidas e criar condições para cobrá-las.
Nesse sentido, voltamos á pergunta anterior. Entre todas as ferramentas, a mais poderosa e a que mais perpetua as soluções é a educação de qualidade. Os países que melhor resolveram seus problemas de pobreza e desigualdade foram aqueles que, primeiro, avançaram na educação fundamental, depois, na educação secundária e só, em seguida, na superior.
 
IS – Em uma sociedade capitalista globalizada, as empresa detêm enorme poder e concentram boa parte da riqueza mundial. Muito poder gera, por consequência, muita responsabilidade. Que papel deve ter uma empresa na promoção da justiça social?
 
RR – A empresa deve ser muito pró-ativa. Ao adotar programas de responsabilidade social, não deve fazê-lo apenas para melhorar a sua imagem. Isso é pouco. As sociedades precisam que a empresa seja agente de mudanças e não uma mera doadora de recursos. Fazer doações, por exemplo, é um ato passivo. Uma empresa pró-ativa movimenta o seu setor de negócios sem perder de vista o pano de fundo social –atua como intermediária no desenvolvimento de políticas públicas e como cobradora das ações de governos. Afinal, o papel do governo é fundamental nas parcerias intersetoriais e também ele é responsável em muitas das dificuldades enfrentadas pelas próprias empresas. Ele é culpado por gerar dispositivos de política econômica que tornam muito difícil para uma empresa ter uma atitude mais esclarecida. No Brasil de hoje, muitas empresas se sentem pressionadas pelo câmbio desfavorável e buscam compensar demitindo funcionários mais antigos e contratando novos a custo menor. Cabe a cada um fazer a sua parte. A empresa não pode suprir as deficiências do governo, mas pode, sobretudo na área que é dela, a de produção, ser capaz de inovar.
 
IS – Combater as desigualdades sociais tem um custo. Quem deve pagar e quem está disposto a pagar a conta?
 
RR – O custo é para a sociedade como um todo. Afirma-se, com razão, que uma sociedade vai ser julgada pela maneira como trata os seus segmentos mais vulneráveis em relação aos quais tem um dever muito grande. Mas esse custo será menor se o país estiver crescendo. O argumento do crescimento, abordado em pergunta anterior, é, em parte, verdadeiro. Mas ele não pode ser apontado como condição única. O ideal é crescer distribuindo e não esperar para fazer a distribuição. O crescimento ideal é aquele que cria empregos produtivos, bem remunerados, com salários adequados e que melhora o bem-estar de todos. No Brasil, mais recentemente, os índices de pobreza e de desigualdade observaram ligeira melhora, o que acabou por se refletir também em pequena mas importante diminuição do desemprego. Este problema –é verdade — continua muito grave. Temos ainda índices altíssimos. Mas mesmo um pequeno avanço no emprego formal, com carteira assinada, já mostrou resultados bastante animadores. Então, o caminho está colocado: o custo da solução deve ser diluído na sociedade porque todos estão ganhando. Se a economia não cresce, querer tirar de uns para dar aos outros é complicado. A classe média, que sempre pagou a conta, sofreu um enorme achatamento nos últimos anos. Seria muito difícil para ela aceitar novos sacrifícios.
IS – O combate às desigualdade sociais por parte de empresas e dos setores economicamente mais favorecidos da sociedade é um ato de altruísmo ou de medo? Ele ocorre por receio aos efeitos de um quadro social ruim, que assusta as classes média e alta, ou por efetiva conscientização e senso de justiça social?
 
RR – Historicamente no ocidente, sobretudo na Europa, é fato que as sociedades tomaram consciência da necessidade do combate à pobreza, primeiro por causa do temor provocado pela Revolução Francesa e pelas revoluções constantes na primeira metade do século 19. Havia um temor político, um certo medo do radicalismo. O outro tipo de temor foi o das doenças vindas dos cortiços e das zonas pobres de Londres ou Paris e também o temor da criminalidade. Por outro lado fatores de natureza religiosa, ligados à solidariedade, sempre tiveram muita força sobre a sociedade. Precisamos mais uma vez separar, pois, os fatores de influência. Hoje em dia, no Brasil, há uma mistura do sentimento crescente de insegurança, do temor da criminalidade e também um sentimento de horror quanto a coisas que acontecem aqui como massacres de presos ou de crianças de rua. São manifestações tão chocantes de desumanidade que acabam influenciando o próprio sentimento de solidariedade. E isso é importante. Mal ou bem os governos estão tentando achar uma solução.
 
IS – O combate às desigualdades sociais requer uma ação macro ou deve resultar do somatório de pequenas ações regionais personalizadas e dispostas em rede?
 
RR – Acho importante haver uma articulação de forças. Mas a melhor e mais eficiente política contra a pobreza deve ser uma política macroeconômica. Uma política como a nossa, com juros muito altos, crescimento baixo e desestímulo ao investimento e à geração de empregos é a mais perversa que pode existir. Pois impede justamente a multiplicação de empregos. A primeira providência, portanto, é adotar uma política econômica que permita o crescimento numa taxa mais ou menos rápida com geração de emprego. Mas só isso não basta. É preciso também uma política macro com cunho social para corrigir as distorções, já que nós gastamos muito favorecendo os muito idosos, os aposentados e as pessoas que têm renda relativamente mais alta. Isso precisa urgentemente ser corrigido. É preciso também –como já afirmamos — uma boa política de educação. De qualquer modo, nada disso será suficiente se considerarmos que a nossa pobreza se distribui em bolsões. Eliminá-los exigirá também ações direcionadas a cada região problemática, pois cada uma delas possui especificidades. O Vale do Jequitinhonha é muito diferente da região produtora de sisal na Bahia. São lugares particularmente difíceis que demandam políticas específicas. Há regiões, por exemplo, nas quais as condições ecológicas são particularmente adversas. Faz-se necessário, portanto, analisar em cada caso quais são os fatores gerais e os daquela situação particular.
A meu ver, a prioridade deve ser o enfrentamento da pobreza urbana. Este é um desafio maior. Embora evidentemente haja muita pobreza rural, o Brasil é um país bastante urbanizado. A pobreza das favelas e das periferias pode ser conseqüência da pobreza rural, mas as pessoas que já criaram raízes nas cidades, não vão querer mais voltar para o campo. Muitas já estão na segunda e na terceira gerações, totalmente ambientadas na área urbana. As áreas rurais vêm perdendo sua importância demográfica.
 
IS – E qual deve ser o papel das organizações da sociedade civil nesse processo de combate ás desigualdades sociais?
 
RR – Estou convencido há muito tempo de que as organizações não-governamentais de todos os tipos são grandes agentes de mudança, até mais que os partidos políticos e os sindicatos. Os partidos ficaram muito presos a certos interesses e plataformas. As ONGs, por sua vez, cumprem um papel importante de colocar fim aos vícios gerados pela democracia representativa. Elas dão mais voz a certos segmentos, têm o poder de chamar a atenção para os problemas. Faz parte do papel do Terceiro Setor reinventar a democracia. Sem a sua atuação certamente não teríamos observado os progressos que tivemos, nos últimos 40 anos, em direitos humanos, meio ambiente, igualdade da mulher e outras tantas causas. Estas organizações representam importantes agentes políticos de mudança.
 
IS – Quando o senhor era ministro ficou famosa a sua frase “O que é bom a gente mostra e o que é ruim a gente esconde”. Como o senhor vê essa declaração hoje em que principalmente o movimento de responsabilidade social defende a total transparência?
 
RR –. Não fiz aquela afirmação com a convicção de uma declaração. Foi uma frase solta no meio de uma conversa de final de tarde, com um amigo, depois de um dia no qual havia dado 22 entrevistas. Estava cansado e nessas condições nem sempre se diz exatamente o que se pensa. A mídia conferiu ao episódio um valor literal que ele não teve. Tudo ocorreu antes de uma entrevista ao jornalista Carlos Monforte, da TV Globo. Ele afirmava que a inflação do primeiro mês do real – julho de 1994 – havia sido maior do que o esperado, e que, portanto, o Plano Real estava condenado ao mesmo fracasso do Plano Cruzado. Disse-lhe que não era verdade, que já tínhamos, no começo de setembro, os dados de três semanas de agosto que provavam uma forte queda da inflação naquele período. Ele então ficou irritado porque eu não queria divulgar esses dados na entrevista, respeitando uma posição do governo de divulgar os números mensais e não em períodos quebrados. Ele então insistiu. E foi aís que eu disse a frase seguida da observação de que não poderia quebrar o compromisso assumido de só divulgar o resultado com o mês fechado. Na verdade, estava mostrando ali que eu tinha escrúpulos em cumprir o combinado. Mas muita gente tomou a frase como se eu estivesse escondendo as coisas. Ficou a impressão de que eu tinha praticado aquilo. Ninguém se deu ao trabalho de analisar a minha vida. Até pedi desculpas, me demiti e nunca mais tive vontade de retornar á vida pública.
 

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