Entrevistas – Repórter da gênese, profeta da boa nova (parte 1)

Entrevistas – Repórter da gênese, profeta da boa nova (parte 1)

Desde 1973, o fotógrafo Sebastião Salgado percorre o planeta com uma preocupação “capital”, como ele costuma dizer: retratar o “animal humano” e as mazelas impostas ao bicho-homem por causa da má-distribuição de renda, do processo de industrialização, do êxodo rural, do preconceito étnico-político-religioso, da fome e da miséria. Nos últimos três anos, no entanto, ele alterou o foco de suas teleobjetivas e passou a capturar não mais a miséria humana, mas a riqueza e a diversidade da flora e da fauna em lugares onde o ser humano jamais esteve. Ou onde ainda se mantém um modo de vida primitivo, preservando, imaculados, rituais sagrados e ancestrais. São paragens praticamente intocadas que, segundo Salgado, representam 46% do ecossistema do planeta.

Cinqüenta e cinco desses primeiros registros resultaram na exposição “Projeto Gênesis”, cujo lançamento mundial aconteceu em Vitória, no Espírito Santo, em abril deste ano. No último dia 26 de outubro, após um período de exploração nas montanhas de Kamchatka, na Rússia, e pouco antes de iniciar uma visita às tribos indígenas isoladas da Venezuela, Sebastião Salgado esteve em Belo Horizonte, Minas Gerais, para mais uma breve temporada da exposição. Na ocasião, o agora “profeta da boa nova” recebeu jornalistas para uma entrevista coletiva. Antes, porém, conversou reservadamente com Ricardo Voltolini, diretor de redação, e Cláudia Piche, editora-assistente de IdéiaSocial, sobre sustentabilidade, responsabilidade social de empresas, governos e cidadãos, meio ambiente e, claro, fotografia. O resultado dessa conversa você acompanha na entrevista a seguir:

 

IS: Em seus trabalhos anteriores (Outras Américas, L’Homme em Détresse, Trabalhadores, Êxodos…) a matéria-prima de suas fotografias sempre foi o ser humano. Agora, em Gênesis, você registra paisagens e animais. O que o levou a mudar o foco?

SS: As pessoas me perguntam se me transformei em fotógrafo de natureza ou de animal. Mas não é realmente isso. O Gênesis é um projeto. A idéia nasceu a partir do nosso trabalho no Instituto Terra, em Aimorés, no interior de Minas Gerais. Surgiu de uma aproximação muito forte com a biodiversidade. A Lélia, minha mulher, e eu começamos esse projeto, em 1991, comprando um pedaço de terra da família, uma área totalmente degradada que recuperamos. Com o início da recuperação, começamos também um projeto de educação ambiental, desenvolvendo viveiros. Este ano, vamos ultrapassar mais de um milhão de mudas de árvores de mais de trezentas espécies nativas da Mata Atlântica. Com o projeto, passamos a ver o que não víamos antes: a necessidade de apresentar a natureza às pessoas de um modo que elas pudessem compreender, amar e assimilar para a vida delas. Foi aí que surgiu a idéia de fotografar o que estava sendo destruído para criar um choque! Fizemos uma grande pesquisa e vimos que hoje, no planeta, 46% das áreas estão praticamente intocadas. O ser humano já destruiu, portanto, mais da metade dele. Mas esses 46% ainda estão aí, como no dia da concepção, no dia da gênesis! Resolvemos, então, registrar, ao longo de oito anos, uma amostra representativa do que existe de mais puro no planeta. Até iniciar esse trabalho eu não fotografava animais. Só havia retratado o animal humano. Mas sempre dentro do seu ambiente, normalmente rural. Este novo desafio me dá um prazer enorme. É um privilégio poder freqüentar o que tem de mais fabuloso no planeta! Além disso, pensamos em Gênesis como uma tentativa de trazer a megadiversidade do planeta para o centro do debate global. Não adianta discutir mais só distribuição de renda, fome e miséria como a gente sempre discutiu. O meio ambiente é uma variável absolutamente fundamental, pois há uma clara correlação entre a destruição da natureza e a pobreza. No caso do Brasil, vejo com especial interesse a discussão que as empresas vêm fazendo. E acho a participação delas uma saída interessante porque a quantidade de recursos públicos destinados à preservação de meio ambiente é mínima. Ainda estamos na fase desenvolvimentista, em que o importante é equilibrar uma balança de pagamento doentia e completamente deformada. É um sistema doente porque não está baseado no consumo interno, no desenvolvimento das potencialidades econômicas do país. Mas na exportação, no mercado externo. E todas as políticas aqui levam à concentração de renda. Existe um abandono da natureza e da educação, por exemplo. São temas que parecem não importar muito aos governos. Isso precisa mudar. Mas, enquanto não muda, acho fundamental o interesse das empresas pela responsabilidade social.

 

IS: Você tem acompanhado o movimento de responsabilidade social empresarial no Brasil?

SS: Sim. Existe, de fato, uma preocupação sincera das empresas. É muito interessante discutir com alguns executivos de empresas no Brasil que se mostram tão interessados quanto eu e a Lélia em relação à natureza, à distribuição de renda e à educação. Acho isso de uma novidade tão grande no sistema planetário! Estive conversando com o presidente da província de Roma, que nos apóia no Instituto Terra, sobre o interesse das empresas brasileiras pela responsabilidade social. Ele ficou entusiasmado e com vontade de convidar empresários brasileiros para conferências porque esse tipo de movimento não é comum na Itália. Na verdade, não é comum em muitos outros lugares. Isso torna o movimento brasileiro mais importante. Possivelmente estejamos criando uma novidade no mundo.

IS: De fato, o movimento de responsabilidade social empresarial brasileiro é uma referência mundial. Mas, por aqui, o termo responsabilidade social começa a ser sucedido por uma noção importante, que é a da sustentabilidade. O que é sustentabilidade para você?

SS: Minha noção de sustentabilidade é a da preservação hoje para poder sobreviver amanhã. Não é mais do que isso! Significa pensar hoje de forma a manter o equilíbrio para as gerações futuras. Essa é uma preocupação que nunca houve no Brasil, principalmente no setor primário e no início da industrialização. Porém, existem países no mundo em que foi pior. Acabei de chegar da Rússia, trabalhando no Kamchatka. Lá, o socialismo da ex-União Soviética agiu de modo irresponsável para com a região e o planeta. Sem dúvida, investiram em educação e em saúde. Mas ignoraram a variável ambiental, que poderia compor com o modelo adotado. Houve uma destruição plena. O planeta nunca interessou a eles. Mas aqui também não é muito diferente. Voltando à política brasileira, não tem havido interesse dos governos em relação à natureza. Conheço bem o Lula, de quem me considero amigo, mas não vi uma preocupação efetiva do seu primeiro governo. No ano passado, trabalhei com os indígenas no Parque do Xingu, que está em processo iminente de destruição por causa do avanço das grandes propriedades de soja. Esse tipo de agricultura é terrível porque produz uma imensa poluição dos rios, reduz as águas e provoca uma penetração nas áreas do parque, destruindo a cultura indígena, hoje altamente ameaçada. Acho que nunca se destruiu tanta floresta no Brasil quanto no penúltimo ano.

A Amazônia, por exemplo. Estamos destruindo num ritmo sem igual! Quanto custa recuperar um hectare? Possivelmente são trilhões de dólares de reserva de capital que temos na Amazônia, em forma de floresta, que estamos jogando fora! E nós mesmos estamos destruindo, sem colocar nada no lugar! Por isso me entusiasma a ascensão do conceito de sustentabilidade, que hoje começa a aparecer no mundo empresarial. Espero que, em seu segundo mandato, Lula faça da preservação ambiental uma preocupação nacional. Hoje há duas variáveis críticas para o Brasil – uma é a segurança urbana e outra, a ambiental.

Não necessitamos destruir tanto o ambiente como destruímos. Tomo como exemplo a minha região, o Vale do Rio Doce, que foi inteiramente depredada. Existe lá uma agricultura de baixíssima produtividade e uma pecuária com rendimentos negativos. Se aquela região do tamanho de Portugal fosse cortada do sistema produtivo brasileiro, não faria a mínima diferença! Nem seria notada. Mas ela pode ser recuperada. E custaria barato fazer isso, muito mais barato do que foi destruí-la. Tenho visto mais interesse por parte de empresas do que de governos em investir na região.

IS: Qual o papel de cada um dos setores em relação à preservação ambiental: sociedade civil, governos e empresas. Como eles podem atuar em conjunto?

SS: A aliança entre os setores é um modelo ideal de atuação na causa ambiental. É o modo como tenho procurado trabalhar no Instituto Terra. Na condição de representante da sociedade civil, tomei a iniciativa de recuperar uma área que conheci quando criança. E como sou uma pessoa relativamente conhecida, as minhas idéias ganharam penetração e conseguiram atrair pessoas para a causa. O governo corresponde à correia transmissora. Felizmente temos três níveis de governo. E o mais fácil de trabalhar, realmente o companheiro de todo dia, é o municipal. Normalmente o prefeito e os vereadores são produtores rurais e dependem daquele ecossistema que está sendo destruído. Por isso, também se sentem ameaçados e se transformam em parceiros efetivos. Desde o momento em que iniciamos o nosso projeto no Vale do Rio Doce, contamos com a participação dos prefeitos da região. Mesmo sendo de partidos políticos diferentes, que brigavam entre si, eles se uniram em torno da questão essencial. Os governos municipais são, portanto, fundamentais. Trabalhar com o segundo nível de governo, o estadual, já não é tão fácil. Mas ainda assim é menos complicado do que com o governo federal. Temos recebido apoio dos governos estaduais. Na criação do nosso instituto, tivemos uma colaboração decisiva do governo de Minas Gerais, por meio do IEF – Instituto Estadual de Florestas – para transformar uma propriedade privada numa RPPN – uma reserva particular do patrimônio natural. A condição de RPPN, sem dúvida, facilitou muito as coisas. O atual governo do Espírito Santo envolveu-se bastante, também, com o projeto. O governo federal ficou alheio. Ele depende de variáveis tão macroeconômicas, de correntes políticas tão distantes. O nosso sistema político é estruturalmente muito deformado. Criou-se um eixo São Paulo-Rio-Brasília. Então o que está dentro dele existe. E o que está fora é marginal. Isso é uma coisa a ser mudada neste país!

IS: E como tem sido a relação com o segundo setor, as empresas?

SS: Temos recebido enorme apoio. Aliás, é a nossa principal fonte de apoio. Quando começamos o projeto, procuramos Renato de Jesus, o maior plantador de florestas deste país, que é o diretor da reserva da Companhia Vale do Rio Doce, em Linhares, no ES. Ele vinha para o futuro Instituto Terra trabalhar, medir, fazer amostragem, conhecer toda a região. Criou o nosso projeto-mãe de recuperação ambiental. O Renato levou uns dois anos nos visitando praticamente todos os fins de semana. Nunca cobrou nada! Depois a Natura veio com a gente. Um dos donos da empresa, o Guilherme Leal, esteve pessoalmente no projeto. E foi um dos primeiro a acreditar nele quando ainda não tínhamos nada, nenhuma construção. Eles fizeram a contrapartida com o Fundo Brasileiro do Meio Ambiente, que era um fundo de participação, na época, avaliado em torno de um milhão de dólares. Assumiram a metade. Construímos uma infraestrutura fabulosa, ali no Vale do Rio Doce. Depois nos aproximamos da CST, hoje Arcelor. E com ela criamos um centro avançado de recuperação ambiental, uma coisa única no Brasil. Temos formação de biólogo e de engenheiro florestal, em nível universitário. E também oferecemos internato de dois anos para 20 alunos de escola técnico-agrícola. Fazemos uma seleção, buscamos os meninos nas escolas e os levamos para o Instituto Terra onde recebem uma formação 80% prática. Filhos de proprietários rurais, eles saem de lá técnicos agroecológicos. E voltam para o campo, necessariamente. Passam a ser, também, técnicos em ecologia, o que para nós é algo capital porque, em futuro próximo, eles serão gestores de projetos, quem sabe até um secretário de Meio Ambiente das prefeituras. E farão isso bem, porque têm o conhecimento. É esse tipo de profissional que, provavelmente, vai coordenar os produtores rurais da região. Nesse centro avançado recebemos, também, 10 alunos estrangeiros por semestre. Temos um convênio com a Universidade de Santa Fé, no Estado do Novo México, nos EUA. Eles também contribuem em vários projetos sociais na nossa comunidade, ensinam inglês nas escolas, trazendo uma outra mentalidade. Agora, estamos preparando um convênio com a Universidade das Astúrias, na Espanha, para o próximo semestre. Nesses projetos, várias empresas, como a Phillips do Brasil, também têm dado seu apoio. Portanto, a participação empresarial para nós é muito, muito importante. É claro que você pode criticar, dizer que a empresa polui e de uma certa forma ajudou a destruir o nosso patrimônio ambiental. Mas foi o espírito do sistema, não a empresa. Foi a opção de sistema que nós fizemos. Esse passívo precisa ser discutido, mas não pode servir de barreira: a empresa de um lado, nós do outro. Temos que trabalhar juntos.

IS: Uma revista brasileira publicou recentemente uma matéria de capa dizendo que as ONGs ambientalistas são as novas inimigas das empresas e do desenvolvimento. Como você vê essa afirmação?Você acredita nisso?

 
 

SS: Não vejo dessa forma. Acho perigoso reforçar antagonismos. Existe, na verdade, uma grande quantidade de empresas realmente predadoras. E também existem alguns setores realmente radicais entre os ambientalistas. Mas acho necessária a aproximação entre os pólos. As organizações ambientalistas podem contribuir, e muito, para modificar o aspecto predatório de determinadas empresas. Em um país como o nosso, onde grande parte da responsabilidade social que deveria vir do Estado não vem, porque não existe dinheiro, ela vai ter que vir das empresas. Portanto, precisamos trabalhar junto com as empresas.

IS: Falando de fotografia, é comum ouvirmos dizer que você é uma espécie de Cartier-Bresson deste novo século. O que você acha dessa comparação?

SS: Cartier-Bresson foi muito amigo nosso. Em comum, temos a mesma base de fotografia que é o interesse pelo planeta. O que sempre admirei nele foi a força que teve de rodar o mundo inteiro nos anos 40 e 50, a sua curiosidade e seu desejo de buscar. Curiosidade é uma coisa muito importante. Os confortos da sociedade urbana levaram a um certo isolamento, provocaram um distanciamento entre as pessoas e o planeta. Eu e Bresson tivemos o privilégio de não perder a curiosidade. De ter a vontade de ver, de ir mais longe, de questionar, de não ter medo de se misturar e descobrir que, na realidade, o animal humano é um só. Estando no interior de Minas Gerais ou no interior do Vietnã, somos o mesmo bicho. E o que é essencial para mim é também para os outros. Quando estou com fome, as pessoas estão com fome. Quando sinto saudades da minha família, os outros sentem das suas. Hoje estou descobrindo com os animais também o que eu não conhecia antes. Na Patagônia, por exemplo, fotografei algumas baleias. E mantive uma relação tão forte com aquela comunidade que uma delas virou minha amiga. A ponto de chegar ao lado do barco e me deixar fazer carinho. Veja bem: pude tocar uma baleia de 40 toneladas e 25 metros, observá-la virar o olho e bater o rabo na água para me fazer voltar. É possível também estabelecer uma relação assim, tão bonita, com as iguanas. Os animais têm dignidade, merecem respeito e possuem um sistema racional, compatível com as suas espécies. É mentira que somos a única espécie racional do planeta. A tartaruga também tem a sua racionalidade. Estou descobrindo tudo isso de uma maneira incrível. Hoje sei que existe dignidade nas árvores e nas paisagens. A Terra é fantástica. Eu e Bresson compartilhamos dessa relação da curiosidade, do prazer de ver, de receber, de dar. Um trabalho como este faz a vida ficar muito mais simples. Perde-se uma quantidade de pruridos pequeno-burgueses, e mal recebidos, que fazem todo mundo viver mal.

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