Entrevistas – Sem um sistema público moderno, capaz de cumprir bem as suas funções, não há terceiro setor e mercado que funcionem direito (parte 2)

Entrevistas – Sem um sistema público moderno, capaz de cumprir bem as suas funções, não há terceiro setor e mercado que funcionem direito (parte 2)

IS – No processo de construção de um novo modelo de País, mais justo e igualitário, que papel o sr. atribui a cada um dos três setores: governo, iniciativa privada e sociedade civil?
 
RCF – A meu ver, o desafio central é o da modernização do Estado. Sem um sistema público moderno, capaz de cumprir muito bem as suas funções básicas, não há terceiro setor e mercado que possam funcionar direito. Vivemos um momento de clara rejeição ao Estado. Em recente pesquisa do Iser, sobre atores sociais, feita nas favelas cariocas, os políticos receberam uma avaliação mais baixa do que a polícia. A família, campeã do estudo, ficou com nota 9,1. A polícia ganhou nota quatro e os políticos, 2,9. Esses números dão bem a gravidade do quadro. Quando um político recebe nota mais baixa do que a polícia, em favelas do Rio de Janeiro, é porque o descrédito chegou a um nível extremo.
O Estado tem a função de liderar, de apontar os rumos, de marcar as grandes diretrizes. E também de regulamentar atividades de educação, saúde e segurança. Seu papel é, portanto, central. A impressão que se tem é que o Estado brasileiro passou os últimos 20 anos tentando lidar consigo mesmo, preocupado quase exclusivamente com as questões de ordem econômica. Deixou de cumprir suas funções.
Já o papel principal do mercado é produzir, gerar lucro, viabilizar e modernizar. Isso, a rigor, as empresas sempre fizeram. A novidade, na última década, é que elas descobriram que para prosperar precisam pensar além dos seus muros, no longo prazo, respeitando o interesse particular de seus acionistas, mas também os interesses coletivos da sociedade. A isso se tem dado o nome de responsabilidade social empresarial. Este novo comportamento tem sido visto como fator de sobrevivência em mercados cada vez mais críticos.
Quanto ao terceiro setor, penso que dependa de um Estado eficiente e de um mercado que funcione com estratégias de longo prazo. Sozinho, não consegue fazer muita coisa. Mas num contexto de composição com os outros setores, ele tem várias funções. Desde as compensatórias, ligadas ao antigo conceito de caridade, ainda ativo e importante, até as de inovação.O terceiro setor é especialmente mais bem preparado para enfrentar problemas difíceis e não percebidos pelo olhar macro dos outros dois segmentos, mas absolutamente fundamentais para o desenvolvimento da sociedade. Há um campo enorme de colaborações possíveis entre governo e terceiro setor.
 
IS – O sr. poderia dar um exemplo de colaboração possível entre o governo e o terceiro setor?
 
RCF – O terceiro setor pode ser especialmente útil na melhoria da qualidade de escolas públicas. Considerando o fato de que são compostas por profissionais qualificados e estão capacitadas para olhar o micro com maior sensibilidade, organizações da sociedade civil geram, por exemplo, inovações em metodologias e materiais para uso pedagógico, e contribuem ativamente para solucionar problemas em escala menor e localizada. Nesse sentido, são parcerias fundamentais dos governos.
Veja o grave caso dos jovens que repetem várias vezes de ano ou que abandonam precocemente a escola. Hoje no Brasil, 31% dos jovens entre 18 e 24 anos saíram da escola antes de completar o ensino fundamental. Com isso, um terço da população jovem do país tem pouca ou nenhum chance de inserção ou crescimento no mercado de trabalho. Não há nenhuma política pública educacional para recuperar esses jovens. O investimento neles deu-se fora da esfera pública, com a criação dos telecursos, que hoje se busca transformar em política pública. Eis é um exemplo típico de inovação do terceiro setor.
Defendo cada vez mais uma integração entre o sistema público de ensino e as organizações da sociedade civil. Mas é claro que esta só haverá se os governos, ainda muito rígidos, se interessarem por este tipo de parceria. A meu ver, o Estado precisa cuidar melhor do macro, oferecendo melhores salários e escolas mais bem equipadas aos educadores. O micro deve ficar com a sociedade civil que o faz melhor. Apesar de decisivo para a solução de muitos de nossos problemas sociais, a esfera do micro não faz parte da cultura do País. Aqui tudo tem de ser grandioso, senão não vale a pena.
 
IS – O sr. poderia dar mais um exemplo de como o terceiro setor poder atuar na esfera micro em parceria com os governos?
 
RCF – Sim, o Favela Bairro do Rio de Janeiro. A reestruturação das favelas é um projeto macro da prefeitura na área de reintegração urbanística. Este tipo de intervenção só a prefeitura pode fazer. Mas dentro da proposta, há pequenos resultados que, somados, significam muito e que só a sociedade civil pode atingir. Estão previstas, por exemplo, várias praças de esportes. É um absurdo a prefeitura assumir a gestão dessas praças. Haverá grupos querendo dominá-las. Se as praças forem mal administradas, vão acabar nas mãos do tráfico, deixando de ser solução para se transformar em novo problema. Geri-las requer, portanto, a presença de gente que compreenda a dinâmica do local, conheça as pessoas que ali vivem e acompanhe horários e formas de uso. Isso não é trabalho de prefeitura. E sim de organizações da sociedade civil. Evidentemente a escolha dos gestores não pode ser aleatória, até porque a tarefa implica planejamento e treinamento. Quanto mais Favela Bairro, mais trabalho para as instituições. Quem afirma que as organizações podem substituir o Estado está dizendo uma grande bobagem.
 
IS – Educação é, de fato, uma área que tem recebido enorme atenção por parte de organizações de terceiro setor e de empresas. Gostaria de retomar um ponto importante que o sr. mencionou anteriormente: o do grande número de jovens que repetem e abandonam a escola. Por que os jovens abandonam a escola?
 
RCF – São diversas razões. Saem por que estão desmotivados, em geral por causa da repetência. Saem muitas vezes pressionados por questões de natureza econômica. Nesse cenário de evasão, destaco um segmento muito particular que vem crescendo no Brasil: o das meninas grávidas que, além de ter problemas com a família e de impeditivos econômicos, acabam expulsas da escola. A escola não está preparada para ter meninas grávidas em seu quadro de alunos. Representam um estorvo para o sistema educacional. No Rio de Janeiro, um problema para elas é –acredite – o uniforme.
Na escola pública carioca, é proibido assistir aula de barriga de fora. E quando a barriga dessas meninas começa a crescer, a blusa do uniforme fica curta e a calça não fecha mais. Sem uniforme, elas não podem entrar. Com a barriga de fora e o botão da calça forçosamente aberto, são barradas pelo inspetor. Com o passar do tempo, uma regra rígida como esta, sem qualquer proposta alternativa, tira as meninas da escola, inibe a sua participação. Depois que o filho nasce então, o problema se agrava porque não há local onde se possa deixá-lo enquanto assiste aula e está amamentando. Muitas meninas deixam a escola porque têm vergonha de estar grávida e não contam com nenhum apoio para minimizar o seu constrangimento. Estudo feito pelo projeto Ana e Maria, do Viva Rio, com meninas pobres grávidas e jovens mães, mostrou que 41,2% abandonam a escola ao saber da gravidez. Das que continuam a estudar, 51,2% faltam constantemente às aulas.
Penso que uma alternativa simples e eficaz seria, por exemplo, abrir espaço para as discussões de gênero entre os estudantes. Eis mais uma ação micro, tipicamente de terceiro setor, possível de ser implantada em pequena escala e depois replicada.
 
IS – O destino das crianças que deixam as escolas pode ser o tráfico de drogas?
 
RCF – No Rio de Janeiro a evasão escolar é bem menor que a média brasileira. Representa 19% contra 31% no País como um todo. Mesmo assim, ainda é um número expressivo. Desses 19%, estimo que entre 1% e 2% integram o tráfico. Muitos trocam a escola pela busca de um lugar no mercado de trabalho. Mas a maioria fica na ociosidade. A escola não o atrai, então ele pára de ir e fica à toa. Acorda tarde, dorme tarde, faz um bico aqui e outro ali, vira-se sem rumo em um ambiente desprovido de oportunidades de crescimento.
A competição econômica do tráfico com o mercado legal de trabalho não é tão importante quanto se imagina pela simples razão de que o tráfico não paga tão bem quanto se propaga. Varia conforme o rendimento do momento e o espírito carnavalesco do chefe local, isto é, o seu comportamento de exibir e gastar dinheiro.
Se não há atrativos financeiros, o poder e o prestigio local continuam a seduzir muitos jovens. Este poder, no entanto, vem associado à morte. É passageiro, uma aventura radical sem volta. Quem o tem, morre cedo. Todo mundo sabe disso na favela. O tráfico não é mais visto como mecanismo de ascensão social ou uma escolha duradoura. Não é o principal destino dos jovens que saem da escola e muito menos o principal motivo.
 
IS – O sr. considera o planejamento familiar como uma alternativa para reduzir as desigualdades sociais?
 
RCF – O planejamento familiar é importante, mas vejo uma necessidade especial de atenção para a gravidez na adolescência. Entre as meninas com quem trabalhamos nos projetos do Viva Rio, há aquelas que com 15 anos já têm dois filhos. Este é mais um desafio para as escolas, pois é lá que estão os adolescentes, moças e rapazes. Sei que as escolas já têm muito o que fazer, mas precisam colocar para dentro de suas salas, além de esporte, informática e atividades artísticas, também as discussões de gênero. E não apenas para falar de gravidez na adolescência, mas sobre todos os assuntos que permeiam o tema. A relação de gênero foi totalmente transformada pela dinâmica social. Há hoje uma crise radical da masculinidade. A violência é um sintoma disso, do desespero do macho, que está em evidente processo de desequilíbrio, quer ir atrás da arma, do poder, de matar, bater, fazer e acontecer. A tradição do homem como esteio da casa deixou de ser realidade. Ele não consegue mais cumprir essa expectativa, cuja existência, ainda forte, representa motivo de frustração. As mulheres procuram muito mais alternativas sociais e econômicas para resolver seus problemas. Qualquer porta que se abra, o número de mulheres a chegar antes é maior. Até mesmo na academia de polícia, as vagas têm sido ocupadas cada vez mais por mulheres. E com as melhores notas. Os dramas dessa relação de gênero começam muito cedo, ainda na adolescência.
 
IS – Como o senhor vê a crise política de valores pela qual passa o país?
 
RCF – Havia uma grande esperança de que o governo do PT desse continuidade ao que começou a ser feito antes e colocasse prioridade em uma agenda social mais realista. Não conseguiu. Agora vive uma crise que reproduz todo o problema institucional do nosso Estado. Isso é muito frustrante. Mas vejo o momento atual como um desafio para a sociedade brasileira. Não se trata mais de uma questão partidária ou ideológica. Interessa a todos nós repensarmos a atuação do Estado brasileiro. Termina um ciclo em que a política andava associada a alguma ideologia. Agora é uma questão de salvação nacional. Chega de perde-ganha. Chega de apagar incêndios. Mesmo diante de uma situação de grande instabilidade, só seremos o país que desejamos ser se soubermos pensar nossos problemas no longo prazo. A qualidade de sociedade que estamos produzindo, no médio prazo, não interessa para ninguém.
 
IS – Diante de problemas tão graves e importantes, que pedem soluções pontuais, o longo prazo não parece ao sr. muito distante?
 
RCF – Acho um enorme desperdício não solucionarmos mais rapidamente os problemas que emperram o desenvolvimento do País, pois isso é tão possível. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que as dinâmicas mais recorrentes no Brasil estão além de nossas forças individuais. Algumas são até globais. Há momentos nos quais a dinâmica favorece avanços maiores como o que aconteceu, em meados da década de 90, com a contenção da inflação. Foi um momento de renovação de esperanças.
Movimentos positivos foram gerados em decorrência dele. Mas, em outros tempos, também vivemos períodos de desagregação, de modo que aprendemos a lidar com enormes adversidades. Quando tudo indicava que ingressávamos em um momento propício, abateu-se sobre nós uma nova crise político-institucional. Não podemos mais desperdiçar oportunidades históricas. Preocupa-me, sobretudo, imaginar um novo período de retrocesso. Ou ainda, uma fase de radicalismo, como estas que observamos em alguns países da América Latina que não conseguiram resolver seus problemas no tempo em que dava para consertar. O período pós-ditadura está completando um ciclo. A hora é de consolidar a nossa escolha pela democracia.

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