Especial – Ética nos negócios: o embate entre duas morais, a altruísta e a egoísta

Especial – Ética nos negócios: o embate entre duas morais, a altruísta e a egoísta

O papel decisivo do consumidor mais exigente

Segundo Perazzo, são boas as oportunidades para empresas interessadas em ampliar mercados com uma visão altruísta. Como exemplos de práticas responsáveis simples, o executivo da Fides cita as marcas próprias das grandes cadeias de supermercados e a montagem de redes paralelas de pontos de venda com infra-estrutura mais enxuta em locais de baixo poder aquisitivo. “Com a marca própria, a empresa consegue vender mais barato e indica que atestou a qualidade. Com as redes paralelas de distribuição, leva o mesmo produto exposto em sua cadeia principal para locais mais pobres simplesmente porque mexeu na estrutura do mercado e não na qualidade do que é vendido. Isso também tem efeito comercial, mas nada impede juntar efeito comercial com efeito ético”, explica. O famoso C.K. Prahalad, professor da Escola de Negócios da Universidade de Michigan (EUA), escreveu recentemente na Harvard Business Review sobre o quanto empresas podem contribuir para o desenvolvimento de populações pobres investindo nos mercados inseridos na base da pirâmide social.
Para o presidente do Etco, o consumidor exercerá papel cada vez mais decisivo na mudança dos parâmetros éticos de atuação das empresas. Muito forte em outros países, o consumo consciente é um movimento com imenso potencial de expansão no Brasil. Mas ele só vai se tornar mais expressivo quando puder contar, em seu rebanho, com a totalidade dos consumidores brasileiros. Hoje apenas alguns segmentos de classe média alta dos grandes centros urbanos estão dispostos a premiar ou punir empresas, comprando ou deixando de comprar produtos e serviços, em virtude de comportamentos mais ou menos socialmente responsáveis. O próximo desafio –aposta Kapaz – será incluir a maior parte da população de menor poder aquisitivo, com baixo nível de consciência em relação ao valor ético adicionado aos produtos. Este público encontra-se no centro de um ciclo vicioso preocupante. Como não dispõe de boa renda, escolhe seus produtos pelo preço. Não pode, portanto, ainda que queira, comprar os que decorrem de empresas socialmente responsáveis pois estes costumam ser mais caros na medida em que não deixam as contas social e ambiental para ninguém pagar. Não pode pagar basicamente porque recebe baixo salário e é vítima de relações de trabalho não socialmente responsáveis. Assim se dá a retroalimentação do ciclo vicioso. “Infelizmente, essa é a base dos processos econômicos de alguns países em que o crescimento se deu sem ter como base o desenvolvimento humano e a justa distribuição de renda”, afirma Kapaz.
É mais fácil ser ético e socialmente responsável na Alemanha do que no Brasil

Se o hábito faz o monge, como prega o dito popular, a esta altura da matéria cabe retomar a pergunta de algumas linhas atrás: em um ambiente de corrupção, no qual impera a velha “lei de Gérson”, o senso de sobrevivência e auto-preservação justificam a adoção de comportamentos pouco éticos ou ameniza a sua culpa? A resposta dos entrevistados de Idéiasocial é não. Como fazer então para escapar das armadilhas impostas por um contexto permissivo e favorável?
Para Perazzo, “abrir o jogo” pode ser a solução. O executivo da Fides acha que, em determinadas situações, que exigem decisões inseridas no âmbito da ética, os dirigentes devem convocar suas equipes e discutir abertamente o problema, avaliando prós e contras. Eventualmente, uma decisão em grupo, mediada pela reflexão ética a respeito dos impactos da medida, pode até significar a perda de um negócio ou da oportunidade de ganhar mais dinheiro. Mas também por essa razão é fundamental que não seja tomada a portas fechadas, exclusivamente pela direção da empresa. “Muitas vezes, dizer não a uma prática de ética duvidosa é tão difícil quanto dizer sim. Vários interesses estão envolvidos. É necessário compartilhar a decisão com todos para gerar compromisso desde o porteiro até o presidente”, explica.
Ele cita, como exemplo, o recente caso das construtoras e do governo francês . Cansadas do comportamento pouco ético de membros do seu cliente, na contratação de obras públicas, reuniram-se, convocaram o ministro da área e solicitaram mudanças imediatas nos procedimentos. Foi uma decisão corajosa. Romper um ciclo de corrupção, com o qual corruptor e corrompido se acostumaram por conveniência, exige uma postura firme de uma das partes. “Empresários se unem constantemente em defesa de preços e direitos. Por que não se unirem em defesa de princípios?”, questiona.
Para Kapaz, o empresário brasileiro é, acima de tudo um forte. No Brasil, os seus limites –de paciência, de competência e de fé — são testados cotidianamente por um sistema tributário injusto, uma burocracia asfixiante, uma justiça lenta e uma enorme sensação de impunidade. “Ao conseguir sobreviver em ambiente tão inóspito, muitas vezes sem abrir mão dos seus valores, ele tem se mostrado melhor do que aquele que vive em países com condições mais favoráveis. É mais fácil manter os princípios éticos e ser socialmente responsável na Alemanha, por exemplo, do que no Brasil”, conclui.
Código de ética. Ter ou não ter um?

No esforço de assegurar as condições para a incorporação de princípios éticos ás suas práticas, muitas empresas têm lançado mão de códigos de ética. Entre os especialistas ouvidos por Idéiasocial, não há um consenso nem sobre a sua real utilidade. O presidente da Fides acha que ele tende a se transformar em documento “congelado” se não for objeto de construção coletiva, isto é, do desejo dos funcionários e da participação e compromisso de todos os setores da empresa. Nesse sentido, não pode vir de “cima para baixo”. Para Perazzo, ainda existe uma certa confusão quanto ao que é um código de ética. “Há quem acredite que nele devem constar itens sobre como a empresa deve cumprir as leis. Isso não faz sentido. Muita gente enxerga na ética um teto a se atingir e não a base para as ações e decisões cotidianas”. Kapaz concorda. Segundo ele, ter um código não significa necessariamente segui-lo. “Não é um quadro para pendurar na parede e esquecer. Ele deve estar associado à pratica do dia-a-dia”, sugere.
Srour tem uma opinião diferente. Para ele, o código de ética é um papel candidato a morar no fundo de uma gaveta. Cartas bem intencionadas não garantem práticas bem intencionadas. “Não adianta dizer eu quero ou pretendo ser honesto. Todo mundo quer. É preciso criar situações práticas que impeçam as pessoas de não o serem. Elas podem ou não estar escritas em uma carta ou código, provocar ou não mudanças nos valores individuais. Não importa. O que vale é criar mecanismos para que a prática ocorra e saber no que ela resulta”, defende.
Para o professor, mais importante do que o código de ética é a congruência entre o discurso e a prática. As atitudes valem mais do que palavras escritas em papel. “Uma ong, por exemplo, que não cumpre as leis trabalhistas mostra duplicidade moral e dá um mau exemplo. É como o partido do governo tentar justificar que precisou entrar no jogo sujo para fazer o socialismo mais tarde. Determinados fins podem até justificar os meios, mas baseados na teoria da responsabilidade, no resultado de uma complexa e detalhada equação de custo-benefício, em que o preço a pagar seja humanamente possível”, explica.
Ao defender a teoria da responsabilidade sobre cada decisão ou atitude, Srour amplia o raio de alcance da reflexão, fazendo menção ao conceito de “especismo” do filósofo australiano Peter Singer. Segundo o professor, este conceito propõe uma discussão sobre valores morais muito mais profunda do que a realizada hoje. “O homem ainda se restringe ao contato com o próprio homem. As poucas empresas que lidam com a relação entre as espécies, a meu ver essencial, ainda o fazem de forma superficial”. Para Srour, a visão antropocêntrica leva o ser humano a descartar a sobrevivência e o bem-estar dos outros seres em sua cadeia de valores morais. Como exemplo, cita o processo “desumano” utilizado na criação e no manejo de animais nas fazendas de abate e também o caso das cobaias em laboratório “Tratamos os animais de forma totalmente abjeta, quando há alternativas possíveis e rentáveis. Deveríamos, no mínimo, pensar nisso”, aconselha.
É fato que, ao considerar valores “mais humanos”, muitas empresas teriam de mexer em sua estrutura, o que poderia implicar em um investimento financeiro inicial. Srour, Singer e outros defensores deste tipo de mudança de comportamento garantem que, no final das contas, o saldo será positivo: os novos hábitos vão gerar menor custo financeiro e profundos ganhos éticos em toda a cadeia de relacionamentos com o homem e com o resto do planeta. “Mais do que o dinheiro, o assunto não é colocado em pauta porque dá trabalho e demanda tempo fazer mudanças. Então, como já estão acostumados a fazer daquele jeito e a reclamação do bicho ninguém ouve, acabam com a discussão antes mesmo dela começar” ressalta o professor.
Para Srour, um modo de inserir nos negócios condutas que valorizem o bem coletivo pode estar no que ele classifica como moral da parceria. Este conceito se baseia na teoria da responsabilidade mencionada anteriormente. É uma estratégia orientada por uma ampla e detalhada análise de risco nas principais tomadas de decisão empresariais.
“A moral da parceria opera na base de uma relação custo-benefício complicada e extremamente difícil. Mas que é usada com sucesso pelas empresas mais lúcidas”, explica. Como exemplo, cita novamente a indústria farmacêutica.”Vamos falar do lançamento de um remédio. Se eu usar a visão do tudo ou nada, diria que remédio faz mal porque traz efeitos colaterais. No entanto, quem está doente precisa tomar remédio porque a doença é mais grave do que os efeitos colaterais. Na mentalidade do tipo oito ou oitenta, a decisão de lançar o medicamento pode nem ser aceita. Na teoria da responsabilidade será. Faz-se uma análise detalhada de risco. O remédio constitui um mal verdadeiramente necessário para atingir um bem maior”, finaliza.
A dura vida das empresas que escorregaram na ética

O leite derramado na Parmalat

¨ No último mês de junho, a justiça italiana condenou dez executivos e um advogado por causa de fraudes ligadas ao grupo Parmalat. Acusados de manipulação de mercado, falsificação de informações e obstrução do trabalho de fiscalização do governo, os presos geraram para a empresa um prejuízo estimado em 14 bilhões de euros, sendo protagonistas de um dos maiores escândalos empresariais dos últimos anos. Por serem inferiores a dois anos, suas penas foram trocadas por trabalhos comunitários ou mesmo suspensas. Calcula-se que tenham lesado 75 mil investidores. O caso ainda está sob investigação.
Funcionária denuncia Enron

¨ Depois de três anos tentando denunciar fraudes contábeis para a diretoria da própria empresa, a especialista em ética nos negócios, Lynn Brewner, resolveu, em 2001, levar a público o que sabia. Acabou relatando o maior escândalo financeiro dos Estados Unidos e derrubando a imagem de empresa inovadora e geradora de altos lucros que a Enron tentou construir naquele mercado. Lynn preside hoje uma organização certificadora de empresas contabilmente responsáveis
Escândalo na alemã Volkswagen

¨ O uso de dinheiro da Volkswagen para financiar viagens e encontros de executivos e políticos alemães com prostitutas vem derrubando funcionários graduados da empresa. Os principais destinos “turísticos” são Brasil e Índia. A montadora alemã ampliou sua auditoria interna para investigar detalhes das viagens de seus funcionários do alto escalão. Três executivos alemães foram indiciados. O escândalo envolve também corrupção na Skoda, fábrica de automóveis pertencente ao grupo Volks.
Nike aprendeu com os erros

¨ Nos anos 90, a Nike foi considerada o símbolo mundial de falta de responsabilidade social graças às condições desumanas de trabalho observadas em alguns de seus fornecedores. A forte pressão popular e as constantes denúncias na imprensa provocaram enorme susto na empresa. O escândalo levou a Nike a rever valores e a montar uma complicada equação financeira para conseguir respeitar as leis trabalhistas sem alterar sua política de preços a ponto de perder competitividade. Atualmente a empresa promove e financia diversas atividades voltadas para melhorar as condições de trabalho no mundo inteiro e não só na sua cadeia de relacionamentos.
Mas chegar lá não foi simples. Primeiro, a Nike tentou se defender usando o surrado argumento do “por que estão me acusando se todo mundo age assim?” Em seguida, resolveu aceitar as críticas e rever posturas. Contratou uma auditoria e, em 1998, investiu em uma área de responsabilidade social profissional. Precisou ainda rever profundamente sua estratégia de gestão para que as novas diretrizes pudessem ser colocadas em prática.

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