Especial – Executivos do bem (parte 1)

Especial – Executivos do bem (parte 1)

No ano passado, o norte-americano John Wood lançou um livro para contar como tomou a decisão de deixar seu alto cargo como executivo da gigante Microsoft para fundar uma organização sem fins lucrativos no Nepal. Em Saí da Microsoft para mudar o mundo, publicado em 2006 (Editora Sextante), são relatadas as motivações e os processos pelos quais Wood passou e que resultados sua visão empresarial trouxe para a sua nova atividade no campo social.
Hoje, a  Room to Read – iniciativa do ex-executivo para ajudar crianças carentes aprender a ler e  escrever  – já abriu bibliotecas e escolas em regiões carentes do Vietnam, Camboja, Laos, Índia, Sri Lanka e África do Sul. “O mais difícil ao sair da Microsoft foi saber que estava deixando uma vida e um estilo de viver muito bem estabelecidos. Quando saí da Microsoft, não tinha um plano de como a Room to Read iria acontecer, só sabia que tinha que agir”, conta Wood.
A escolha do Nepal como base para o trabalho e sede da Room to Read  aconteceu por acaso. Em férias da empresa, no final da década de 1990, o então executivo decidiu realizar um trekking (caminhada em montanhas) nas cordilheiras do Himalaia. Ao chegar ao Nepal, porém, deparou-se com um cenário em nada paradisíaco: ignorância, miséria e escassez reinavam nos vilarejos locais. De tudo o que viu, o que mais o impressionou foi a precariedade das escolas visitadas e a ausência de livros nas salas de aula.
A causa educacional como meta, a estratégia corporativa como método.
De volta ao dia-a-dia corporativo, Wood permaneceu inquieto. As realidades constatadas na Ásia o atormentaram de tal forma que se decidiu por retornar e tentar ajudar de alguma maneira. A primeira idéia foi levar livros àquelas vilas e escolas tão sem recursos. Porém, o que começou como um impulso humanístico evoluiu para uma força maior: a vontade de devolver à sociedade a oportunidade que ela lhe proporcionou. Assim começou uma rede social que hoje atua  em diversos pontos da Ásia na construção de escolas, bibliotecas e centros de informática, além de publicar trabalhos locais e oferecer obras em inglês aos alunos.  “A experiência na Microsoft me ensinou que é preciso fazer investimentos agora para criar valores de longo prazo. Então, investimos pesadamente no treinamento de bibliotecárias, porque na maioria do mundo em desenvolvimento as pessoas não cresceram com uma biblioteca”, destaca.
A trajetória de John Wood revela, na verdade, uma tendência que, guardada às devidas proporções, também tem sido verificada na vida de alguns executivos brasileiros. Alto cargo na empresa, carro do ano, salário polpudo, estabilidade financeira, oportunidades de viagens. Tudo o que representa o sonho de muitos jovens já foi realidade para alguns empresários que descobriram não ser mais suficiente satisfazer os objetivos materiais e passaram a apostar em qualidade de vida e em formas de aplacar uma inquietante sede de espírito.
Idéia Socioambiental reuniu a história de seis desses executivos que, depois de atingir um alto posto na carreira profissional, mudaram radicalmente a direção do leme de suas vidas e decidiram dedicar-se a causas sociais. A carga de trabalho não é menor. As dificuldades também não o são. Mas o sentimento de dever cumprido e a satisfação pessoal compensam a rotina desgastante.
Benefícios, em vez de lucros
Depois de 30 anos a serviço do mundo corporativo, a executiva Vânia Ferro parou – forçada pela demissão da empresa onde trabalhava havia nove anos – para pensar e  começou a perceber que o alto salário não pagava os custos de deixar a vida e projetos pessoais de lado. “Quando parei, aos 45 anos, comecei a refletir sobre a importância do que vinha fazendo para mim mesma e para outras pessoas”, conta. Da reflexão nasceu a certeza de que o  trabalho “tem que proporcionar não apenas lucro  para um grupo privado, mas também benefícios para o máximo possível de pessoas”. Esse sentimento, reforçado pelas lembranças de uma origem humilde, a levou a querer quitar uma espécie de “dívida de gratidão” pelas boas oportunidades recebidas na vida. “É como um sentimento de culpa. Você vai elevando seu padrão de vida mas, no fundo, sente-se um pouco sozinha, já que não consegue levar com você todos os que conviviam ao seu redor.”
Vânia destacou-se no mundo empresarial à frente das operações da 3Com  e experimentou o auge de sua carreira como presidente da empresa nos Estados Unidos, no final da década de 1990. Este foi –segundo ela – o período mais complicado. Na condição de uma das primeiras mulheres a ingressar no seleto grupo de altos executivos do setor tecnológico,  sofreu pressões e exigências profissionais redobradas.  Por conta de confrontos internos, acabou demitida da multinacional. Foi justamente este fato que determinou os novos rumos que sua vida tomaria dali em diante. Por meio do programa de recolocação profissional em que foi inscrita, refletiu sobre como seria empregar suas habilidades de gestora no terceiro setor e acabou sendo contratada pela Care Brasil – organização internacional de combate à pobreza, onde permaneceu  como executiva principal durante dois anos e meio.
Hoje, aos 56 anos, Vânia aposta na qualidade de vida e num negócio mais intimista:  a Pousada da Amendoeira, na Praia do Toque, em Alagoas, que idealizou e montou com o apoio de dois sócios. Além disso, dá aulas em Faculdades e atua como conselheira de ONGs e empresas, trabalhos esporádicos que se adaptam perfeitamente à sua nova rotina. Nada mais de ficar se dedicando horas e horas a fio a um alto e bem remunerado cargo. “Por mais que você goste do que faz, trabalhar  12 a14 horas por dia significa abrir mão de outras coisas, o convívio com a família, por exemplo”, afirma, lamentando ter estado tão ocupada durante a adolescência das filhas Letícia e Fernanda.
“Agora, só quero me dedicar à minha neta e ao meu marido, que sempre me acompanhou e sofreu muito”, diz. Além disso, Vânia acredita ser preciso dar oportunidade aos mais jovens de ocupar posições de ponta no setor privado.  “Se todas as empresas tivessem uma gestão mais moderna, os processos seriam mais democráticos e  mais eficientes. As pessoas com mais experiência deveriam estar nos conselhos, assim têm a oportunidade de dividir seus conhecimentos e, ao mesmo tempo, dar oportunidades aos mais jovens.”
Tal convicção é exercida na Pousada da Amendoeira que, pode-se dizer, é o resultado de todas as suas experiências anteriores como gestora. Projetado para ser autosustentável e socialmente responsável, o empreendimento pretende envolver e compartilhar com os funcionários e a comunidade o  sucesso do negócio. Assim, Vânia e seus sócios decidiram destinar um percentual mínimo de 25% do lucro líquido anual da Pousada para ser investido em projetos relacionados aos funcionários e à comunidade.
Para Vânia, as diferenças entre as organizações da sociedade civil e as empresas privadas são praticamente nulas, já que estão fundamentadas, em ambos os casos, na gestão de pessoas e na melhoria dos processos de gestão. Existe certa oposição ao fato de que é necessário ter um maior aproveitamento dos processos e do custo operacional para que os recursos sejam maximizados. Os recursos humanos – argumenta – também devem ser gerenciados da mesma forma. “Em uma organização da sociedade civil os objetivos são nobilíssimos, mas os conflitos entre as pessoas  causam os mesmos prejuízos que em qualquer outra instituição.
Questões de ego fazem com que disputem espaço quando trabalhar em conjunto é o mais importante. No setor privado, a disputa por poder, posições e espaço é a mesma, só que um é poder econômico e outro é o poder da idéia”, observa.
Uma semelhança entre os dois setores, na opinião de Vânia, é o tempo de trabalho. Ela lembra que, ao contrário do que pode parecer, quando exercia a direção da Care, trabalhava tantas ou mais horas do que  quando presidiu a 3Com. “A diferença é que na empresa você é pressionado por metas e resultados numéricos que precisam ser obtidos para justificar o alto salário que lhe pagam.  Nas organizações sociais, a pressão é a mesma, porém, interna”, destaca. Nessas entidades, o que a incomoda – ressalta – é  a urgência com a qual o indivíduo deseja resolver os problemas das causas com as quais lida, e a proporcional lentidão do processo.
“Diante de  milhares de pessoas em situação de miséria absoluta, fica-se com o dever de se trabalhar o máximo para que aquilo dê certo:  o projeto precisa andar, receber recursos. É uma pressão tão grande ou maior, mas em relação ao seu compromisso com aquelas pessoas”, distingue. Além deste, ela vê outro problema no terceiro setor: os prazos longos, a situação financeira precária, os custos operacionais, as muitas variáveis nos projetos, os conflitos entre pessoas e departamentos. De uma coisa, porém, é convicta. “O dia-a-dia é similar, mas as motivações são completamente diferentes”.
Cultura solidária já temos, falta investimento
Para Kimy Tsukamoto, diretora da Ashoka Brasil-Paraguai, a idéia de trabalhar no terceiro setor levou um longo tempo de maturação. Começou aos poucos, com participações em associações e movimentos de bairro, nos momentos livres de seu dia-a-dia de trabalho no setor privado. O que determinou sua opção foi “o fato de as organizações da sociedade civil exercerem  um impacto maior e com desafios muitas vezes mais difíceis do que os existentes no mundo corporativo. Ficamos na empresa durante cerca de oito horas por dia, mas somos cidadãos 24 horas”, argumenta.
Depois de oito anos a serviço de empresas brasileiras, Kimy mudou para os Estados Unidos, em 1992, onde foi fazer mestrado. No total, passou 12 anos no exterior, trabalhando e estudando também na Europa e Ásia. Especializou-se no desenvolvimento de tecnologias da informação em companhias estrangeiras – entre elas a Dun & Bradstreet (EUA), líder mundial no fornecimento de informações para áreas de crédito, marketing, compras e áreas de suporte a serviços. “Minha vida era passar 12 horas no escritório, usar tailleurs, salto alto e me envolver em discussões muito afinadas, mas sempre focadas no objetivo do negócio, dos acionistas”, conta, “Para nós, da empresa, provocar impacto social era dar emprego para as pessoas. Eu queria ir além”, diz.
Foi o que fez. Decidida a dedicar-se integralmente a uma causa e interessada em urbanismo,  procurou programas com metodologia reconhecida internacionalmente para trabalhar com  patrimônios da humanidade. Não encontrou nada exatamente como queria, então, fundou o Beyond Funding Institute, trabalhando com projetos bilaterais no Brasil e nos Estados Unidos. Aos poucos, foi voltando para o país por considerar que as necessidades aqui eram bem maiores. De volta a São Paulo, Kimy se surpreendeu ao encontrar boas lideranças no terceiro setor não menos competentes do que as que havia conhecido nas empresas.
Em meados deste ano, aceitou convite da Ashoka para dirigir os trabalhos no Brasil e no Paraguai. Empolgada com os desafios de estímulo ao empreendedorismo social da organização,  ela considera  que, apesar de se dedicar em dobro ao trabalho hoje em relação ao tempo em que era executiva,  a qualidade das relações humanas mudou significativamente. “Antes, os contatos eram muito escorados nos cargos, na hierarquia, no ‘fazer um social’. Numa OSCIP, você procura no outro o que você não tem para juntos construir algo melhor, de benefício mútuo. A opinião não é mais pessoal, é conjunta.”, afirma.
Ainda que a decisão de voltar para o Brasil tenha agradado Kimy, ela reconhece que existem diferenças essenciais em relação ao exterior. A primeira, no Terceiro Setor, é a dificuldade em captar recursos. “Temos a cultura solidária, mas não uma cultura de investimento solidário. Aqui vejo muitos expectadores e um pequeno grupo realmente atuante. Nos EUA, ao olhar apenas os números de captação individual em dinheiro, já é muito diferente”, analisa. Ela sugere, nesse caso, menos paternalismo e mais incentivos fiscais para doações – ainda que condene a presença forte do Estado nas relações sociais. Para mudar uma questão de base é preciso da ajuda do governo. “Mas isso também é conseqüência de os indivíduos e as empresas não estarem conectados e não tomarem os problemas em suas próprias mãos.”
Além disso, Kimy acredita que as esferas pessoal e profissional no Brasil são muito misturadas, o que interfere na gestão de qualquer organização. Falta rigor nos processos, nos horários e nos prazos. Outro fator que interfere é a natureza dos problemas sociais brasileiros, que são muito mais básicos e numerosos do que nos lugares nos quais ela trabalhou. “Ao falar de um programa para jovens aqui, não são 10 mil, mas 10 milhões de pessoas atingidas, por exemplo”, detalha.
Para a diretora da Ashoka, um dos desafios que mais a motivam é colocar empresários em contato com uma realidade social com a qual nunca se depararam na vida. Isso em seu próprio país. Esse foi um dos motivos pelos quais ela retornou à terra natal. “Talvez eu não tivesse o mesmo empenho se não estivesse em um ambiente no qual eu visse tanto a necessidade de mudança e não me considerasse parte da solução de longo prazo. Minha vida hoje em dia é 100% social, de volta ao país onde nasci.”
Soluções para a inclusão social
Acostumado a trabalhar com operações de larga escala, o economista brasiliense Luiz Ros já gerenciou 20 milhões de dólares quando liderava o Fundo Nacional de Meio Ambiente no Ministério do Meio Ambiente do governo FHC. Encabeçando o programa New Ventures, da World Resources Institute (WRI), organização sem fins lucrativos ligada ao setor privado, o executivo levantou 18 milhões de dólares em seis anos, para projetos de desenvolvimento sustentável de 150 empresas na China, Índia, Indonésia, no Brasil e México.
Depois de marcar sua passagem pelo governo e por organizações privadas, Ros novamente mudou de setor, mas não de área de atuação. Hoje, faz parte do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), com o programa Oportunidades para a Maioria. Em conjunto com o  indiano C.K. Prahalad, um dos maiores pensadores mundiais em estratégia corporativa, o brasileiro conversa com líderes empresariais e chefes de Estado da América Latina em busca de soluções que aumentem a participação das camadas mais pobres no mercado consumidor.
A possibilidade de aplicar conceitos e práticas de negócios na busca de soluções de mercado para problemas sociais e ambientais foi a principal motivação de Ros para a nova empreitada. “Também foi interessante a oportunidade de atuar como facilitador de relações entre empresas, sociedade civil e governo na construção desses novos paradigmas corporativos e, por vezes, muito fascinantes”, complementa. O economista se refere à sustentabilidade, que trouxe aos negócios uma maneira integrada de enxergar as atuações dos três setores da sociedade. “Estamos vivendo um momento único, em que avanços tecnológicos combinados com novos modelos de negócios inclusivos e parcerias com a sociedade civil organizada  permitem que as empresas acessem mercados e populações de baixa renda antes inteiramente negligenciados”, empolga-se.
Ao comparar sua atuação no setor privado e com a que tem hoje, a serviço da sociedade civil, Ros considera a principal diferença a escala das operações. No WRI, os projetos eram desenvolvidos como piloto, enquanto no BID as negociações adquiriram  proporções gigantescas – compatíveis com a ambição de atingir milhares de pessoas na América Latina. Para ele, o importante é entender que a forma de gerir uma e outra instituição depende de seu modelo de operação, e por isso, não pode ser comparado. “É preciso ter em mente que os trade-offs são parte de toda escolha profissional, daí termos que aprender a conviver com essas trocas e escolhas”, justifica.
Menos salário e mais autonomia
Durante o período em que chefiou o setor de Recursos Humanos da Companhia Energética de São Paulo, Maria Aparecida Bento, ou Cida para os colegas e amigos, experimentou um padrão de vida muito diferente daquele em que foi criada. Afro-brasileira, paulistana e filha de um motorista e de uma empregada doméstica (que tornou-se enfermeira aos 50 anos), ela teve a oportunidade de concluir um doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e de assumir cargos executivos de crescente responsabilidade.
Sempre preocupada com a questão da diversidade, Cida começou a reparar, ainda na década de 1980, que havia nas empresas, de forma mais ou menos generalizada, muita discriminação contra mulheres, negros e pessoas com mais de 45 anos. Incomodada com a situação, decidiu sair da companhia e desenvolver ações para tornar o espaço corporativo mais democrático. Em 1990, criou o Centro de Estudos das Reações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), uma OSCIP com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades no setor privado por meio da elaboração de projetos para empresas e prestação do serviço de consultoria.
Quando compara os benefícios dos dois empregos, não se arrepende. “Eu tinha melhores condições financeiras, sem dúvidas. Recebia o dobro do meu salário de hoje, tinha o carro do ano. Em compensação, não tinha autonomia, o envolvimento e a paixão que tenho pelo que faço atualmente. Não me sentia contribuindo para uma sociedade mais cidadã”, contrapõe.
O ritmo da vida de Cida também mudou. Ainda que agora trabalhe mais do que antes– como Kimy, da Ashoka –, ela consegue incluir em seu dia atividades como caminhadas, exercícios e aulas de dança, que ajudam a manter a boa disposição para o trabalho mesmo em períodos mais estressantes. “Acreditar no seu propósito faz muita diferença também em termos de saúde, prazer, bem-estar , se sentir atuante e otimista”,diz.
Se no ambiente corporativo “perde-se a noção de valores e do significado da vida”, conforme descreve Cida, e “a competitividade, ausência de vida pessoal e perda da noção da dimensão humana permeiam a rotina”, o terceiro setor não fica atrás em obstáculos. “É um setor muito mais vulnerável, principalmente no território da sustentabilidade”, avalia. O lado bom, destaca, é o fato de haver mais autonomia sem individualismo, mais condições de construir uma gestão compartilhada entre os pares e subordinados e de alterar regras.
“O crescimento profissional deveria resultar em mais autonomia, isso não é possível na empresa privada, onde existem regras para enquadrar todo mundo. É possível se beneficiar pessoalmente, mas não com o seu coletivo”, ressalta.  O fundamental para ela, porém, é poder contar com a integração do setor privado com as organizações da sociedade civil. Para o futuro, Cida espera que mais ações de diversidade possam sem implementadas em empresas, assim como o CEERT faz hoje com a Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
Em paz com a consciência
Quando completou 60 anos e teve que se aposentar de seu alto cargo no Unibanco por conta de um dispositivo estatutário da empresa, Paulo Bravo impôs-se um desafio: colocar seus conhecimentos adquiridos no setor privado a serviço do terceiro setor. Angustiado com a realidade brasileira, decidiu contribuir para uma causa social e aproximou-se, em 1998, da Ação Comunitária, organização da sociedade civil existente há 41 anos. Acabou por tornar-se  presidente e, por conta da rotatividade dos cargos, é atualmente o vice. “O terceiro setor é extremamente carente de know how em gestão e administração. Nos meus mais de 40 anos de trabalho em empresas bem- sucedidas, estruturadas e organizadas, aprendi uma série de conceitos e ferramentas que quis colocar à disposição de uma ONG para torná-la melhor gerenciada, mais produtiva, e mais eficaz, no sentido de obter mais resultado social com os mesmos recursos”, explica.
Contudo, se a necessidade de discussão e de ações para mudar a realidade social brasileira não fosse tão urgente, Bravo confessa que não teria se dedicado à causa. “Pelo menos, não 100%”, reflete. Ele acredita ser  responsabilidade sua e de todos os que tiveram oportunidades de crescer profissional ou socialmente, de gerar as mesmas possibilidades em quantidade e qualidade para o restante da população. “Já que as classes dirigentes não são capazes de equacionar esse problema – pelo menos de forma não paternalista –, senti a obrigação de me engajar para ficar mais confortável comigo mesmo e com a minha consciência.”
A consciência de Bravo, porém, relutou em se acostumar com a mudança estrutural do segundo para o terceiro setor. A maior diferença – segundo ele — é a disponibilidade de recursos financeiros que, por sua vez, proporciona melhores tecnologias e pessoal. “Até a forma de me relacionar com as pessoas foi difícil no início, porque eu tinha expectativas muito altas em relação ao que elas podiam fazer, que não eram realistas”, observa. Outra adaptação – essa, porém, para melhor – foi em relação ao nível de competitividade entre os colaboradores, muito menor, segundo ele, do que no ambiente corporativo. “Na empresa, adota-se um estado de espírito competitivo por dever do ofício. Na organização do terceiro tetor, passa-se a competir contra o problema social em questão.”
Caridade não, oportunidades sim
A carreira promissora de Marcos Azzi foi construída na Hedging Griffo, empresa que gerencia e potencializa fundos de investimentos de clientes com alto poder aquisitivo, onde ingressou em 1995 como estagiário do terceiro ano de Administração da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). De lá para cá, a movimentação da empresa saltou de R$ 10 milhões para R$ 40 milhões e o mineiro de Poços de Calda, já formado, viu sua fortuna pessoal crescer na mesma proporção. Em cinco anos de empresa Azzi, que  soube aproveitar as oportunidades do mercado em expansão no inicio do Plano Real,  se tornou sócio da Hedging Griffo. “Sou completamente realizado profissionalmente, não só pelo dinheiro, mas por conta do contato constante com pessoas interessantes, geralmente  de mais idade, com as quais aprendi muito. Foi uma  experiência muito rica”, relata.
Hoje, com 35 anos, ele representa uma nova geração de executivos que atingem o ápice da carreira precocemente e decidem repartir com a sociedade os bens – materiais ou não – que angariaram. Até o final deste ano,  Azzi deverá deixar a única empresa em que já trabalhou para dedicar-se à construção de um instituto que levará seu sobrenome. A entidade deverá atuarem três frentes: habitação, educação e valores. A escolha dos temas, explica o empresário, foi feita de forma a abranger “os elos enfraquecidos na juventude”, com  o objetivo primordial de reduzir os índices de analfabetismo funcional. A idéia é  trabalhar com questões como família e sexualidade, por um lado e, por outro, estruturar um lar onde esses potenciais possam se desenvolver.
O diferencial que Azzi promete levar ao empreendimento está, em primeiro lugar, na visão empresarial que imprime ao investimento. “Será tratado de maneira totalmente profissional, com a visão do segundo setor”, diz.  Além disso,  ele garante que não irá manter o conceito de caridade, “em que o de cima doa e o de baixo recebe”. “Somos todos iguais, só tive mais oportunidades do que outras pessoas”, conjectura. Em segundo lugar, ele propõe um novo modelo de contribuição financeira: doar com base na porcentagem do patrimônio. Desta forma, 3% de toda a sua fortuna deverá ser destinada, em princípio, ao instituto. Quando completar 40 anos, serão 4%, e 5% com 50. “Não considero certo incentivar para que as pessoas doem a maior parte do seu patrimônio. São poucos os que têm essa disponibilidade. Se selecionarmos um grupo grande, que consiga doar 1% do seu patrimônio independentemente do salário, já é possível fazer uma transformação muito grande sem reduzir o padrão de vida de ninguém”, empolga-se.
Antes de mergulhar nessa nova etapa da vida, porém, Azzi pretende passar por um período de “descompressão” para se adaptar e fazer a transição com mais tranqüilidade. Nesse meio tempo, vai tocando os preparativos  do instituto, enquanto busca adquirir mais conhecimento sobre a área em viagens ou servindo a organismos internacionais como o BID ou o Banco Mundial. São planos ainda incertos, ele admite.  A única certeza de Azzi é a de que “as empresas, no futuro, serão as grandes mobilizadoras da transformação social, com o mesmo papel que exerceu a Igreja Católica e, depois disso, o Estado e também algumas organizações da sociedade (como o movimento estudantil ou os sindicatos). A partir daí, será possível cada vez mais trabalhar em integração com a sociedade e o terceiro setor”, prevê.
Quando pensa no seu futuro como líder de uma organização da sociedade civil, Azzi só teme tornar-se um ativista radical e inflexível. “Existem pessoas tão apaixonadas pela causa social que se alienam de ouvir, aprender, reeducar-se e reciclar suas visões”, reclama. Sua preocupação com o comportamento humano também está relacionada à qualidade de vida. Azzi conta que passa um bom tempo tentando convencer seus clientes e colegas a separar a vida profissional e pessoal, com dedicação igual às duas. “Jamais me deixei levar pelo excesso de responsabilidade e rotina no trabalho. Diariamente, almoço em casa, levo meu filho à escola e não abro mão de atividades físicas, viagens e férias regulares. Não saio do escritório depois das 19 horas”. A mudança de setor, para ele, “será meramente de atividade”. “A qualidade de vida vai permanecer a mesma”, garante.
Anita Roddick, uma líder com causas
Pioneiro é, segundo o Aurélio, aquele que se antecipa e abre caminhos. No mundo empresarial, os que se dedicam à tarefa de pensar à frente do seu tempo enfrentam a desconfiança de alguns e a incompreensão de muitos, especialmente se suas idéias contestam a ordem vigente e desafiam o lugar comum.
Anita Roddick viveu essa experiência na pele. Quando criou, em 1976, a The Body Shop,  sua visão peculiar de fazer negócios, á época nada ortodoxa, provocou um misto de zombaria e descrédito na Inglaterra. Mulher e militante de causas sociais e ambientais, atuando em um  mundo dominado pelo machismo no qual gente interessada em meio ambiente era vista como  inimiga do progresso econômico, Anita foi logo tratada como figura exótica  e a sua empresa, um experimento radical de ativismo político, não um negócio para ser levado a sério.
Seu discurso de lucro ético –hoje francamente bem aceito — soava bastante utópico para os padrões de 30 anos atrás. Ingênuas também pareciam idéias como a de que uma empresa deve contribuir para a “formação do espírito humano”, deixando-se guiar por um propósito maior do que o resultado financeiro do trimestre. Ou que o senso de comunidade é elemento vital para o êxito de uma corporação. Anita nunca recuou diante das resistências.  Sabia que defender idéias inovadoras tinha um preço. “Qualquer empresa orientada por princípios pode esperar reações extremas, ser elevada acima dos anjos ou rebaixada com os demônios. Isso é um fato da vida para qualquer um que luta por aquilo em que acredita”, confessou um dia.
Em vez de moldar valores pessoais ao negócio, como mandava a regra dos que têm juízo, Anita subverteu a ordem e encaixou o seu negócio em um conjunto de princípios dos quais nunca abriu mão. Foi sempre contra a utilização de produtos testados em animais, devastadores de florestas, gerados a partir de trabalho infantil, agressivos aos trabalhadores, não biodegradáveis e não recicláveis — mesmo quando isso não figurava no manual de bons modos das corporações. Foi sempre a favor de que, mais do que bens e serviços, uma empresa deve produzir idéias para a construção de um novo mundo, transformar-se em agente solidário de mudanças e conectar indivíduos em torno de causas humanitárias.
Coerente como deve ser um bom líder, adotou a mesma ética para a vida e para os negócios, fazendo da The Body Shop um veículo de suas mais profundas crenças e convicções. Houve um tempo, por exemplo, que, em vez de utilizar os caminhões de transporte para fazer propaganda de produtos, a empresa divulgava neles mensagens convidando as pessoas a acreditarem no seu poder de mudar o mundo.   Ainda hoje quem entra em uma das 2 mil lojas da rede, espalhadas em 50 países,  toma logo contato com um elenco de causas que a organização escolheu apoiar, como a do comércio solidário em países africanos e a da erradicação da violência doméstica. Consciente de que não vendia produtos de primeira necessidade, admitiu, certa vez, que usar as lojas para sensibilizar consumidores, foi o “método”  que encontrou  de “introduzir valores numa indústria sem valores.”
Ainda no campo do advocacy, Anita defendeu apaixonadamente o empreendedorismo, o investimento social privado, as culturas locais e o consumo consciente. Uma de suas mais importantes contribuições foi, no entanto, para a causa da beleza feminina. Deve-se a ela a abertura de uma uma trilha em mato denso pela qual, alguns anos mais tarde, Natura e Dove circulariam à vontade. Em 1995, um estudo detectou que sete em cada dez mulheres sentiam-se mal quando olhavam a fotografia de modelos magérrimas em comerciais de TV. Com base nesse dado, indignou-se com a elegia a um padrão de perfeição inalcançável. E decidiu que sua empresa remaria contra a maré.
Assim, criou uma campanha que, no lugar de afrodites, associava a beleza ao caráter, á imaginação e ao humor presentes no cotidiano do universo feminino, valorizando-os como expressão maior do que as mulheres gostam nelas próprias. “Há três bilhões de mulheres que não se parecem como super modelos e apenas oito que se parecem. Conheça sua mente, ame o seu corpo”, berrava o slogan criado para a campanha. Conceito simples hoje, uma revolução para a época.
Anita Roddick morreu aos 64 anos, no último dia 10 de setembro, de hemorragia cerebral. Deixou um livro autobiográfico (“Meu jeito de Fazer Negócios”), duas filhas, algumas árvores plantadas, uma empresa legitimamente verde, com mais 80 milhões de clientes, que mesmo com a venda para a L´Oreal, em 2006, manteve-se fiel aos seus princípios; e um legado de idéias corajosas que hoje podem ser apresentadas, sem susto, por qualquer estagiário em entrevista de seleção.

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