Especial – Executivos do bem (parte 2)

Especial – Executivos do bem (parte 2)

Menos salário e mais autonomia
Durante o período em que chefiou o setor de Recursos Humanos da Companhia Energética de São Paulo, Maria Aparecida Bento, ou Cida para os colegas e amigos, experimentou um padrão de vida muito diferente daquele em que foi criada. Afro-brasileira, paulistana e filha de um motorista e de uma empregada doméstica (que tornou-se enfermeira aos 50 anos), ela teve a oportunidade de concluir um doutorado pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e de assumir cargos executivos de crescente responsabilidade.
Sempre preocupada com a questão da diversidade, Cida começou a reparar, ainda na década de 1980, que havia nas empresas, de forma mais ou menos generalizada, muita discriminação contra mulheres, negros e pessoas com mais de 45 anos. Incomodada com a situação, decidiu sair da companhia e desenvolver ações para tornar o espaço corporativo mais democrático. Em 1990, criou o Centro de Estudos das Reações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), uma OSCIP com o objetivo de promover a igualdade de oportunidades no setor privado por meio da elaboração de projetos para empresas e prestação do serviço de consultoria.
Quando compara os benefícios dos dois empregos, não se arrepende. “Eu tinha melhores condições financeiras, sem dúvidas. Recebia o dobro do meu salário de hoje, tinha o carro do ano. Em compensação, não tinha autonomia, o envolvimento e a paixão que tenho pelo que faço atualmente. Não me sentia contribuindo para uma sociedade mais cidadã”, contrapõe.
O ritmo da vida de Cida também mudou. Ainda que agora trabalhe mais do que antes– como Kimy, da Ashoka –, ela consegue incluir em seu dia atividades como caminhadas, exercícios e aulas de dança, que ajudam a manter a boa disposição para o trabalho mesmo em períodos mais estressantes. “Acreditar no seu propósito faz muita diferença também em termos de saúde, prazer, bem-estar , se sentir atuante e otimista”,diz.
Se no ambiente corporativo “perde-se a noção de valores e do significado da vida”, conforme descreve Cida, e “a competitividade, ausência de vida pessoal e perda da noção da dimensão humana permeiam a rotina”, o terceiro setor não fica atrás em obstáculos. “É um setor muito mais vulnerável, principalmente no território da sustentabilidade”, avalia. O lado bom, destaca, é o fato de haver mais autonomia sem individualismo, mais condições de construir uma gestão compartilhada entre os pares e subordinados e de alterar regras.
“O crescimento profissional deveria resultar em mais autonomia, isso não é possível na empresa privada, onde existem regras para enquadrar todo mundo. É possível se beneficiar pessoalmente, mas não com o seu coletivo”, ressalta.  O fundamental para ela, porém, é poder contar com a integração do setor privado com as organizações da sociedade civil. Para o futuro, Cida espera que mais ações de diversidade possam sem implementadas em empresas, assim como o CEERT faz hoje com a Febraban (Federação Brasileira de Bancos)
Em paz com a consciência
Quando completou 60 anos e teve que se aposentar de seu alto cargo no Unibanco por conta de um dispositivo estatutário da empresa, Paulo Bravo impôs-se um desafio: colocar seus conhecimentos adquiridos no setor privado a serviço do terceiro setor. Angustiado com a realidade brasileira, decidiu contribuir para uma causa social e aproximou-se, em 1998, da Ação Comunitária, organização da sociedade civil existente há 41 anos. Acabou por tornar-se  presidente e, por conta da rotatividade dos cargos, é atualmente o vice. “O terceiro setor é extremamente carente de know how em gestão e administração. Nos meus mais de 40 anos de trabalho em empresas bem- sucedidas, estruturadas e organizadas, aprendi uma série de conceitos e ferramentas que quis colocar à disposição de uma ONG para torná-la melhor gerenciada, mais produtiva, e mais eficaz, no sentido de obter mais resultado social com os mesmos recursos”, explica.
Contudo, se a necessidade de discussão e de ações para mudar a realidade social brasileira não fosse tão urgente, Bravo confessa que não teria se dedicado à causa. “Pelo menos, não 100%”, reflete. Ele acredita ser  responsabilidade sua e de todos os que tiveram oportunidades de crescer profissional ou socialmente, de gerar as mesmas possibilidades em quantidade e qualidade para o restante da população. “Já que as classes dirigentes não são capazes de equacionar esse problema – pelo menos de forma não paternalista –, senti a obrigação de me engajar para ficar mais confortável comigo mesmo e com a minha consciência.”
A consciência de Bravo, porém, relutou em se acostumar com a mudança estrutural do segundo para o terceiro setor. A maior diferença – segundo ele — é a disponibilidade de recursos financeiros que, por sua vez, proporciona melhores tecnologias e pessoal. “Até a forma de me relacionar com as pessoas foi difícil no início, porque eu tinha expectativas muito altas em relação ao que elas podiam fazer, que não eram realistas”, observa. Outra adaptação – essa, porém, para melhor – foi em relação ao nível de competitividade entre os colaboradores, muito menor, segundo ele, do que no ambiente corporativo. “Na empresa, adota-se um estado de espírito competitivo por dever do ofício. Na organização do terceiro tetor, passa-se a competir contra o problema social em questão.”
Caridade não, oportunidades sim
A carreira promissora de Marcos Azzi foi construída na Hedging Griffo, empresa que gerencia e potencializa fundos de investimentos de clientes com alto poder aquisitivo, onde ingressou em 1995 como estagiário do terceiro ano de Administração da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). De lá para cá, a movimentação da empresa saltou de R$ 10 milhões para R$ 40 milhões e o mineiro de Poços de Calda, já formado, viu sua fortuna pessoal crescer na mesma proporção. Em cinco anos de empresa Azzi, que  soube aproveitar as oportunidades do mercado em expansão no inicio do Plano Real,  se tornou sócio da Hedging Griffo. “Sou completamente realizado profissionalmente, não só pelo dinheiro, mas por conta do contato constante com pessoas interessantes, geralmente  de mais idade, com as quais aprendi muito. Foi uma  experiência muito rica”, relata.
Hoje, com 35 anos, ele representa uma nova geração de executivos que atingem o ápice da carreira precocemente e decidem repartir com a sociedade os bens – materiais ou não – que angariaram. Até o final deste ano,  Azzi deverá deixar a única empresa em que já trabalhou para dedicar-se à construção de um instituto que levará seu sobrenome. A entidade deverá atuarem três frentes: habitação, educação e valores. A escolha dos temas, explica o empresário, foi feita de forma a abranger “os elos enfraquecidos na juventude”, com  o objetivo primordial de reduzir os índices de analfabetismo funcional. A idéia é  trabalhar com questões como família e sexualidade, por um lado e, por outro, estruturar um lar onde esses potenciais possam se desenvolver.
O diferencial que Azzi promete levar ao empreendimento está, em primeiro lugar, na visão empresarial que imprime ao investimento. “Será tratado de maneira totalmente profissional, com a visão do segundo setor”, diz.  Além disso,  ele garante que não irá manter o conceito de caridade, “em que o de cima doa e o de baixo recebe”. “Somos todos iguais, só tive mais oportunidades do que outras pessoas”, conjectura. Em segundo lugar, ele propõe um novo modelo de contribuição financeira: doar com base na porcentagem do patrimônio. Desta forma, 3% de toda a sua fortuna deverá ser destinada, em princípio, ao instituto. Quando completar 40 anos, serão 4%, e 5% com 50. “Não considero certo incentivar para que as pessoas doem a maior parte do seu patrimônio. São poucos os que têm essa disponibilidade. Se selecionarmos um grupo grande, que consiga doar 1% do seu patrimônio independentemente do salário, já é possível fazer uma transformação muito grande sem reduzir o padrão de vida de ninguém”, empolga-se.
Antes de mergulhar nessa nova etapa da vida, porém, Azzi pretende passar por um período de “descompressão” para se adaptar e fazer a transição com mais tranqüilidade. Nesse meio tempo, vai tocando os preparativos  do instituto, enquanto busca adquirir mais conhecimento sobre a área em viagens ou servindo a organismos internacionais como o BID ou o Banco Mundial. São planos ainda incertos, ele admite.  A única certeza de Azzi é a de que “as empresas, no futuro, serão as grandes mobilizadoras da transformação social, com o mesmo papel que exerceu a Igreja Católica e, depois disso, o Estado e também algumas organizações da sociedade (como o movimento estudantil ou os sindicatos). A partir daí, será possível cada vez mais trabalhar em integração com a sociedade e o terceiro setor”, prevê.
Quando pensa no seu futuro como líder de uma organização da sociedade civil, Azzi só teme tornar-se um ativista radical e inflexível. “Existem pessoas tão apaixonadas pela causa social que se alienam de ouvir, aprender, reeducar-se e reciclar suas visões”, reclama. Sua preocupação com o comportamento humano também está relacionada à qualidade de vida. Azzi conta que passa um bom tempo tentando convencer seus clientes e colegas a separar a vida profissional e pessoal, com dedicação igual às duas. “Jamais me deixei levar pelo excesso de responsabilidade e rotina no trabalho. Diariamente, almoço em casa, levo meu filho à escola e não abro mão de atividades físicas, viagens e férias regulares. Não saio do escritório depois das 19 horas”. A mudança de setor, para ele, “será meramente de atividade”. “A qualidade de vida vai permanecer a mesma”, garante.
Anita Roddick, uma líder com causas
Pioneiro é, segundo o Aurélio, aquele que se antecipa e abre caminhos. No mundo empresarial, os que se dedicam à tarefa de pensar à frente do seu tempo enfrentam a desconfiança de alguns e a incompreensão de muitos, especialmente se suas idéias contestam a ordem vigente e desafiam o lugar comum.
Anita Roddick viveu essa experiência na pele. Quando criou, em 1976, a The Body Shop,  sua visão peculiar de fazer negócios, á época nada ortodoxa, provocou um misto de zombaria e descrédito na Inglaterra. Mulher e militante de causas sociais e ambientais, atuando em um  mundo dominado pelo machismo no qual gente interessada em meio ambiente era vista como  inimiga do progresso econômico, Anita foi logo tratada como figura exótica  e a sua empresa, um experimento radical de ativismo político, não um negócio para ser levado a sério.
Seu discurso de lucro ético –hoje francamente bem aceito — soava bastante utópico para os padrões de 30 anos atrás. Ingênuas também pareciam idéias como a de que uma empresa deve contribuir para a “formação do espírito humano”, deixando-se guiar por um propósito maior do que o resultado financeiro do trimestre. Ou que o senso de comunidade é elemento vital para o êxito de uma corporação. Anita nunca recuou diante das resistências.  Sabia que defender idéias inovadoras tinha um preço. “Qualquer empresa orientada por princípios pode esperar reações extremas, ser elevada acima dos anjos ou rebaixada com os demônios. Isso é um fato da vida para qualquer um que luta por aquilo em que acredita”, confessou um dia.
Em vez de moldar valores pessoais ao negócio, como mandava a regra dos que têm juízo, Anita subverteu a ordem e encaixou o seu negócio em um conjunto de princípios dos quais nunca abriu mão. Foi sempre contra a utilização de produtos testados em animais, devastadores de florestas, gerados a partir de trabalho infantil, agressivos aos trabalhadores, não biodegradáveis e não recicláveis — mesmo quando isso não figurava no manual de bons modos das corporações. Foi sempre a favor de que, mais do que bens e serviços, uma empresa deve produzir idéias para a construção de um novo mundo, transformar-se em agente solidário de mudanças e conectar indivíduos em torno de causas humanitárias.
Coerente como deve ser um bom líder, adotou a mesma ética para a vida e para os negócios, fazendo da The Body Shop um veículo de suas mais profundas crenças e convicções. Houve um tempo, por exemplo, que, em vez de utilizar os caminhões de transporte para fazer propaganda de produtos, a empresa divulgava neles mensagens convidando as pessoas a acreditarem no seu poder de mudar o mundo.   Ainda hoje quem entra em uma das 2 mil lojas da rede, espalhadas em 50 países,  toma logo contato com um elenco de causas que a organização escolheu apoiar, como a do comércio solidário em países africanos e a da erradicação da violência doméstica. Consciente de que não vendia produtos de primeira necessidade, admitiu, certa vez, que usar as lojas para sensibilizar consumidores, foi o “método”  que encontrou  de “introduzir valores numa indústria sem valores.”
Ainda no campo do advocacy, Anita defendeu apaixonadamente o empreendedorismo, o investimento social privado, as culturas locais e o consumo consciente. Uma de suas mais importantes contribuições foi, no entanto, para a causa da beleza feminina. Deve-se a ela a abertura de uma uma trilha em mato denso pela qual, alguns anos mais tarde, Natura e Dove circulariam à vontade. Em 1995, um estudo detectou que sete em cada dez mulheres sentiam-se mal quando olhavam a fotografia de modelos magérrimas em comerciais de TV. Com base nesse dado, indignou-se com a elegia a um padrão de perfeição inalcançável. E decidiu que sua empresa remaria contra a maré.
Assim, criou uma campanha que, no lugar de afrodites, associava a beleza ao caráter, á imaginação e ao humor presentes no cotidiano do universo feminino, valorizando-os como expressão maior do que as mulheres gostam nelas próprias. “Há três bilhões de mulheres que não se parecem como super modelos e apenas oito que se parecem. Conheça sua mente, ame o seu corpo”, berrava o slogan criado para a campanha. Conceito simples hoje, uma revolução para a época.
Anita Roddick morreu aos 64 anos, no último dia 10 de setembro, de hemorragia cerebral. Deixou um livro autobiográfico (“Meu jeito de Fazer Negócios”), duas filhas, algumas árvores plantadas, uma empresa legitimamente verde, com mais 80 milhões de clientes, que mesmo com a venda para a L´Oreal, em 2006, manteve-se fiel aos seus princípios; e um legado de idéias corajosas que hoje podem ser apresentadas, sem susto, por qualquer estagiário em entrevista de seleção.

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