Especial – Justiça social nas relações comerciais (parte 1)

Especial – Justiça social nas relações comerciais (parte 1)

Nascido nos anos 1940 nos Estados Unidos, recriado nos anos 1950 pelos países europeus e revisto mais recentemente em todo o mundo, o conceito de comércio justo começa a tomar forma no Brasil, mobilizando o primeiro, o segundo e o terceiro setores em


Guarde bem o nome fair trade pois ainda se ouvirá falar muito dele nos próximos anos. Seguindo uma tendência já observada em outros países, o Brasil começa a dar os primeiros passos na discussão do chamado comércio justo. Antes um assunto discutido em fóruns restritos, o tema tem feito parte dos debates de governos, organizações de terceiro setor e também empresas socialmente responsáveis preocupadas em assegurar maior justiça nas relações comerciais com benefícios não apenas para quem vende os produtos mas também para as comunidades de baixa renda que os produzem.
Comércio justo virou um conceito importante no mundo globalizado. Nascido timidamente nos Estados Unidos na década de 1940, e na Europa cerca de dez anos mais tarde, o fair trade sempre foi conhecido como a chamada ” relação norte-sul”, segundo a qual os países ricos abrem seu mercado para a venda de produtos de pequenos produtores de países em desenvolvimento. A idéia, porém, é mais ampla, e ainda insipiente no Brasil, embora o país já tenha tenha até exportação baseada na relação de comércio justo . “Um produto de comércio justo é aquele em que o processo produtivo, da produção á distribuição, atende de forma transparente ás necessidades de quem produz, de quem fornece e de quem consome, garantindo cálculo justo de preços e respeito à seguridade social e aos direitos do trabalho, entre outros pontos”, afirma Rosemary Gomes,que representa fóruns nacionais e internacionais de comércio justo e está envolvida diretamente no grupo de trabalho para a padronização do conceito no Brasil.
Segundo a especialista, o fair trade busca, basicamente, a inclusão econômica e o aumento de renda de pequenos produtores, como forma de contornar o habitual desequilíbrio nas relações comerciais com incentivos. Mas não se restringe a este ponto. A equidade e o respeito na troca de serviços –enfatiza — devem estar presentes em todas as etapas da cadeia produtiva. Não se trata apenas de transparência, boas condições de trabalho e proteção contra as flutuações e taxas de mercado. O resultado esperado do comércio justo é assegurar um patamar de renda que proporcione melhor qualidade de vida ao produtor e ative a economia local, estimulando o desenvolvimento sustentável da comunidade. Mas, na outra ponta –lembra Rosemary — o comprador deve estar disposto a pagar uma quantia em dinheiro geralmente maior por um produto comercialmente justo, conceito que abrange também a preservação da cultura local e do meio ambiente das comunidades produtoras.
De quem deve ser a iniciativa de estabelecer o fair trade?
Dizer que determinado comércio é justo, porém, não significa, por exclusão, apontar como injustas as demais formas. De acordo com Rosemary, o conceito defair trade nunca quis mudar as relações de comercialização mundiais, muito menos ser a única forma de troca. O seu objetivo é, considerando a lógica de mercado, inserir atores que antes eram deixados à margem do processo pelos mais diversos motivos, principalmente em razão da falta de competitividade de seus produtos, seja por causa de impostos, barreiras geográficas, falta de capacitação, baixa escala de produção ou falta de conhecimento de mercado. Para Amy Barry, porta-voz da Oxfam International, entidade pioneira em fair trade na Europa, não é possível afirmar que empresas, governos ou organizações da sociedade civil praticam o comércio injusto, porque cada um pode atuar em defesa ou contra os princípios do fair trade. “É importante perceber que a estrutura do sistema de comércio mundial é intrinsecamente injusta”, afirma.
Considerando, portanto, que é um tema que interessa aos três setores, resta a pergunta: de quem deve ser a iniciativa de estabelecer o comércio justo? Na Europa e nos Estados Unidos, a idéia partiu, por um lado, dos produtores, que se organizaram para valorizar o próprio trabalho. Por outro lado, associações começaram a comprar produtos de comunidades de baixa renda de países pobres, estabelecendo a relação do fair trade clássico. Hoje, a atuação continua no nível das empresas e entidades da sociedade civil. A IFAT (The International Fair Trade Association), com base na Holanda, é a principal instituição do mundo em defesa da causa do comércio justo. Seu papel é trabalhar o marketing, o monitoramento de ações e a discussão mundial do conceito. A inglesa Oxfam também atua ativamente na área. Foi uma das fundadoras da Fair Trade Foundation, uma certificadora de produtos fair trade no Reino Unido, e criou, em parceria com outras ONGs, uma empresa de café e chá comercialmente justos. A entidade lançou também a campanha “Make trade fair“, para divulgar informações, mobilizar a população e incentivar a reivindicação de comércio justo. Outra instituição que atua no campo da certificação dos padrões de fair trade é a FLO (Fairtrade Labelling Organizations International), que fornece selos de qualidade por meio de auditorias (veja box na página XX). Essas e outras instituições têm contribuído para o aumento da consciência do consumidor e da pressão para que empresas apóiem ações e vendam produtos fair trade.Movimento no Brasil é insipiente, mas deve se consolidar até 2007
No Brasil, porém, o movimento ainda está em fase de configuração. Embora a exportação de mercadorias com base no comércio justo já venha sendo praticada no país há algum tempo, esse não deve ser o modelo adotado internamente. A mudança de paradigma se dá, em parte, porque as lojas de fair trade no exterior não têm mais capacidade para receber novos parceiros. Além disso, o crescimento interno é uma oportunidade de explorar o potencial de consumo do brasileiro e engajar a própria sociedade no esforço pelo seu desenvolvimento sustentável.
A novidade brasileira para o fair trade é a interferência do Estado. Desde 2003, primeiro, segundo e terceiro setores unem forças para criar um modelo único, sólido e em grande escala de comércio justo no Brasil. A idéia é que o sistema seja aberto com adesão voluntária. Porém, tanto os produtores quanto as instituições internacionais terão que respeitar uma série de normas para, em troca, se candidatarem a receber o fomento público. Na primeira etapa do processo, que durou até março de 2005, o grupo de trabalho analisou experiências de outros países, discutiu valores, princípios, critérios e indicadores adequados à realidade brasileira, com o objetivo de dar um formato aos padrões nacionais. O fair trade ganhou especificidades e nome composto: comércio justo, ético e solidário (CJES). Até o final de 2005, o grupo visitou quatro experiências que se diziam de CJES, para analisar novos procedimentos e revisar os padrões já discutidos. A partir de então, sempre realizando seminários e ouvindo entidades de todo o país, levou a discussão para os ministérios do Trabalho, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Social. Passaram também a integrar a discussão o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, o Faces do Brasil (Fórum de Articulação do Comércio Ético e Solidário do Brasil) e a Articulação da Agricultura Familiar, organizações que nunca haviam dialogado antes. O Faces do Brasil é um dos principais atores do movimento, um grupo formado pelos principais articuladores do fair trade no país.
“O sistema vai mapear, identificar e qualificar a produção, a escala e as relações sociais. Juntar muitos movimentos representa um grande desafio”, explica Rosemary. Para ela, o país precisa de uma legislação específica, na medida em que os modelos internacionais não comportam suas particularidades. “O território é muito extenso e os processos produtivos de cada região, diferentes. Precisamos ser coerentes com a natureza do Brasil, levando em conta os biomas e as diversidades regionais “, diz. Falta pouco para esse processo ser concretizado: uma instituição normativa (IN), já criada, tornou-se o embrião de um projeto de lei que atualmente está sendo modificado por organizações da sociedade civil e que, em seguida, será votado. Até 2007, o grupo pretende reconhecer 20 mil iniciativas de CJES.
Na opinião de Rosemary, facilita o movimento de comércio justo no Brasil o poder de mobilização social. “O país costuma sempre ser visto como um demonstrativo de possibilidades”, afirma. Para Glayson dos Santos, presidente da Visão Mundial, embora não possuam a mesma capacidade de investimento das iniciativas européias de fair trade, o Brasil se destaca por ter uma visão empreendedora de negócio, muito diferente das ações ligadas à filantropia e a iniciativas sem capilaridade existentes no velho continente.Diferencial da experiência brasileira é reunir os três setores na promoção do comércio justo
A força-tarefa brasileira pela promoção do comércio justo iniciou com as organizações da sociedade civil, a quem cabe o papel de mobilizar os produtores, prestando apoio e oferecendo infra-estrutura. Para Rosemary, envolvida diretamente no grupo de trabalho para a padronização do conceito no Brasil, as ONGs são responsáveis até hoje pela assessoria, capacitação, formação e encadeamento produtivo de quem trabalha no início da cadeia. Apesar do papel fundamental, porém, o protagonista é o produtor.
Aos governos, que tem pouca experiência no assunto, caberá regulamentar o comércio justo e oferecer incentivos públicos para favorecer produtores. “Vamos estabelecer um conjunto de regras do jogo para estimular a adesão com benefícios. Essa é a função do Estado”, explica Jean Pierre Medaets, assessor técnico da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Segundo ele, o governo pretende ampliar gradativamente o investimento no comércio justo. Além de trocar a atitude comercialmente justa por políticas públicas, o Estado vai financiar campanhas para a divulgação do conceito, processos de capacitação, pesquisa e desenvolvimento e infra-estrutura. O Selo Combustível Social, que garante renúncia fiscal para processadores de matéria-prima do Biodiesel, adquiridas de agricultores familiares, é uma primeira e recente ação nesse campo.
Empesas socialmente responsáveis também estão aderindo á prática do financiamento de programas de comércio justo. A Natura, por exemplo, apóia a Associação Ver-as-ervas, de Belém do Pará, especializada na extração de materiais usados para a produção de cosméticos. Com a ajuda financeira, o grupo consegue aprimorar suas técnicas e promover o desenvolvimento socioeconômico da comunidade. Outra experiência semelhante, porém em maior escala, é a do DIS Baixo Sul, financiado pela Fundação Odebrecht e pelo Banco Mundial. Antes da iniciativa, um pescador do município de Cairu, na região sul do estado da Bahia, tinha uma renda irregular de R$ 70. Com a sua integração a uma cooperativa, a melhoria do processo produtivo e a eliminação de intermediários nocivos, a renda do pescador cresceu dez vezes, gerando desenvolvimento sustentável para a região. Segundo Marcelo Walter, diretor executivo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul (Ides), que coordena a iniciativa, os produtores envolvidos no programa estão desenvolvendo uma importante consciência coletiva. “Identifico nos depoimentos uma noção mais clara de futuro, uma mudança de atitude. Já não é apenas o imediatismo do aumento de renda que conta. Eles passam a querer mais”, diz. Em sua opinião, o benefício da maior remuneração é uma forma de estimular os produtores a seguirem em seu processo de crescimento, considerando também outros fatores, como preservação do meio ambiente e o desenvolvimento de sua comunidade.

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