Especial – Justiça social nas relações comerciais (parte 2)

Especial – Justiça social nas relações comerciais (parte 2)

Hora de buscar e de formar consumidores conscientes
Para o executivo do IDES, a dificuldade está em encontrar parceiros sociais da iniciativa privada dispostos a distribuir os produtos para consumidores conscientes. “A baixa renda do consumidor médio brasileiro pode ser um obstáculo para a implantação do comércio justo no Brasil. Os consumidores conscientes, que têm mais dinheiro e valorizam mais o conceito, estão no hemisfério norte. É preciso fazer os produtos chegar até eles”, avalia. Preocupado com a responsabilidade do consumidor no processo produtivo, Walter acha fundamental realizar um esforço pela valorização dos produtos de comunidades nos grandes centros de consumo do país. “Queremos que o consumidor pegue o produto com a mão, com a cabeça e com o coração. Leve para casa e saiba que está contribuindo para o trabalho de uma comunidade”, diz.
Carlos Coscarelli, assessor chefe da Fundação Procon (Proteção e Defesa do Consumidor) do estado de São Paulo, é mais enfático. Baseado em pesquisas de mercado, ele afirma que o consumidor brasileiro ainda não está preparado para comprar produtos de comércio justo. “A grande maioria não presta atenção à questão da qualidade social dos produtos, mas basicamente ao preço”, esclarece. Embora o Procon não tenha muita experiência em comércio justo, Coscarelli admite grande interesse da organização pelo assunto e um movimento interno que resultará na criação de um programa de educação para o consumo incluindo o fair trade.
Na opinião de Santos, da Visão Mundial, a expansão do conceito no Brasil supõe fazer o conceito de comércio justo chegar à sociedade e tornar-se comum, por meio de esforços de mídia e de programas de educação. “É fundamental ocupar espaços, conectar esse novo processo a quem dá visibilidade à causa. O assunto precisa estar mais presente no cotidiano das pessoas para que elas comecem a falar sobre ele”, entusiasma-se. Na avaliação do executivo, as relações comerciais como hoje ocorrem já se mostraram insustentáveis do ponto de vista socioeconômico. “O consumidor precisa pagar uma parte dessa conta”, enfatiza. Jean-Pierre, do MDA, tem opinião semelhante. Para ele, os compradores exercerão um papel importante se começarem a considerar o impacto que as suas escolhas têm na base da cadeia produtiva.
Produtores e consumidores constituem os dois eixos do fair trade

O bom funcionamento do comércio justo depende, portanto, das duas pontas da cadeia produtiva: o produtor e o consumidor. Mas será que um considera a importância do outro? Para Santos, sim. Ele acredita que, ao mesmo tempo em que os produtores se preocupam em conhecer os compradores de suas peças, eles também têm interesse em oferecer mercadorias de melhor qualidade. “Os produtores que estão articulados em rede, participando de movimentos, importam-se muito com a conotação social. Mais politizados, eles conseguem ter uma visão de mundo muitas vezes mais ampla que a do próprio consumidor”, explica.
Lizete, da Associação Mundaréu, pensa um pouco diferente. Para ela, a consciência sobre o que é o comércio justo e sobre seu papel ainda está em construção. Na avaliação de Roberto Palmieri, da Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), a principal dificuldade é a persistência de uma visão equivocada que associa comércio justo exclusivamente a aumento de renda do produtor, reduzindo um conceito muito mais amplo. Segundo o especialista, muitas organizações se dizem de comércio justo apenas para ganhar mais dinheiro com a venda de seus produtos. Em alguns casos –lembra– o produtor exige o preço justo pela mercadoria, mas não repassa o valor agregado para seus fornecedores. Ou, ainda, o que é pior, ele não se preocupa com a preservação do meio ambiente. Em outros casos, o processo simplesmente não reverte em desenvolvimento local. . “Os grupos beneficiados têm questões muito imediatas a serem resolvidas, muitas vezes financeiras. A preocupação deles é aumentar sua renda. Gostaríamos de ver produtores conscientes de todas as normas”, adverte.
Se, para Palmieri, os produtores muitas vezes são individualistas e alienados de seu papel social, o consumidor não está em situação diferente. “Eles pensam o comércio justo como caridade, e não como dignidade e cidadania”, lamenta. Rosemary concorda com esse ponto de vista. Em sua análise, o problema dos compradores se apresent ainda mais grave do que o da base da cadeia produtiva, que tem –segundo ela — um trabalho mais político. “Aqui não há campanhas de educação para o consumo como na Europa”, afirma. Esta também a é a opinião de Santos, da Visão Mundial. Para ele, falta o consumidor se importar em saber quem está por trás da produção do que ele compra. Ele fica preocupado com qualidade, mas não com essa perspectiva social”, diz.
Não é o que pensa Lizete, da Mundaréu, para quem está em curso no País um movimento de mudança de consciência do consumidor. “O público prioritário dos produtos de comércio justo possui mais informação e, portanto, maior capacidade de reconhecer o diferencial dos produtos de fair trade“, afirma. O problema –arrisca– estaria na queda do poder aquisitivo da classe média. Mesmo constrangido – acredita Lizete – esse público troca o socialmente responsável pelo mais barato. No entanto, o eventual desinteresse do consumidor pelos produtos de comércio justo não preocupa a espanhola Verónica Rubio, que esteve no Brasil para lançar a marca Fairtrade , pertencente à organização certificadora FLO. “Na minha opinião, o brasileiro é um consumidor mais passional. Ele vai comprar pela idéia, porque é muito solidário. Já o europeu costuma ser mais rígido em relação à garantia do destino do dinheiro”, defende. Nos Estados Unidos, o consumidor está ficando mais atento e sensível ao tema. Segundo Carmen Iezzi, diretora executiva da associação Fair Trade Federation , os norte-americanos começam a buscar mais informações sobre os produtos que consomem e o impacto social do seu ato de compra. “Uma vez que entenda o conceito, a maioria vai querer fazer as escolhas certas quando for às compras”, garante. Do outro lado da cadeia –enfatiza– os produtores também estão percebendo que os princípios do fair trade representam uma boa maneira de aumentar sua renda, melhorar suas comunidades e construir um futuro melhor.
Dificuldades técnicas prejudicam expansão mais rápida do movimento

As dificuldades encontradas no dia-a-dia das organizações que promovem o fair trade, em geral, são técnicas. Lizete, da Mundaréu, reclama que a falta de visão dos produtores sobre o que é o mercado gera entraves no processo, como, por exemplo, a falta de compromisso com prazos, o desconhecimento do perfil do consumidor, o nível ruim do acabamento das peças e incapacidade de dar conta de encomendas maiores.
Palmieri, da Imaflora, aponta para o fato de que a gestão das cooperativas de produtores muitas vezes fica nas mãos de poucos. A centralização dificulta o envolvimento de diferentes grupos e a ampliação da rede. Como resultado–ressalta– o retorno financeiro acaba sendo menor do que o esperado pelas comunidades. Em sua opinião, espaços de discussão do tema como o Faces (Fórum de Articulação do Comércio Ético e Solidário do Brasil), não permitem estabelecer consensos já que lidam instituições e pontos de vista muito diferentes. “Cada uma tem prioridades e concepções do que é comércio solidário. Concretizar ações é uma tarefa sempre difícil”, diz.
O maior obstáculo para Santos é a incapacidade de articulação das entidades que, segundo ele, são muito territoriais. E a soma de forças é a chave para atingir a tão sonhada produção em larga escala. O especialista da Visão Mundial acha importante também que os movimentos sociais deixem de demonizar as empresas e passem a aprender com elas. Falta de tecnologia e problemas logísticos também prejudicam a expansão do comércio justo no Brasil. “Precisamos construir uma política econômica com um teor mais tecnicista”, defende.
Segundo Verónica, da FLO, o principal desafio que se impõe à expansão do fair trade no Brasil e no mundo é conectar os dois eixos do comércio justo, usando como ponte a informação para produtores e os consumidores. “É preciso colocar os dois em contato. Às vezes o produtor não está sabendo das oportunidades de mercado. Por exemplo, a FLO está procurando sucos concentrados no Brasil. Estou convencida de que existem diversos produtores que gostariam de certificar seus produtos, mas eles não sabem dessa informação”, explica.
O debate caloroso sobre fair trade enseja um cenário de mudanças bem-vindas nas relações de comércio. Embora os resultados ainda sejam incertos, o fato é que essa nova forma de pensar a cadeia produtiva representa uma tendência crescente no mundo. Com sorte, ela também encontará terreno fértil no Brasil tão injusto e desigual. Para Walter, do Ides, o aumento da consciência socialmente responsável é um movimento irreversível. “Não é possível conviver com tanta desigualdade. Não adianta ser uma ilha de prosperidade em um arquipélago de miséria”, diz.

A busca por padrões internacionais

O comércio justo está na moda e praticamente ninguém se declara contrário à iniciativa. Mas, diante das numerosas campanhas de marketing social, como os consumidores podem ter garantias de que uma mercadoria realmente foi produzida de acordo com os princípios desse conceito? Uma das soluções seria a auditoria de entidades especializadas, capazes de certificar produtos vendidos a preços adequados, que remuneram de maneira justa todos os atores envolvidos na produção, entre outros fatores. A Fairtrade Labelling Organizations Internacional (FLO) foi fundada em 1997 com essa finalidade e, hoje, é responsável por fiscalizar a atuação de mais de 500 produtores certificados, espalhados em 50 países da África, Ásia e América Latina.
A porta-voz da entidade, Verónica Perez, comemora o crescente interesse de empresas e produtores rurais de obter um selo de qualidade da marca Fairtrade. “O número de certificações cresceu 418% desde 2000. Mesmo as grandes multinacionais estão nos procurando e nós tentamos cooperar com eles, mas com as precauções e críticas necessárias”. A representante da entidade no Brasil, Verónica Rubio, destaca que a aquisição de um certificado depende de uma análise rigorosa de todos os quesitos que envolvem o comércio justo. “Precisamos saber como está organizada a cadeia produtiva, como está estruturada a rede de distribuição e comércio, se eles precisam exportar os produtos… O acompanhamento é contínuo. Para manter o selo, a empresa passa por auditorias e visitas anuais”.
Amy Barry, representante da Oxfam Internacional, defende a iniciativa. “É absolutamente importante estabelecer padrões que são reconhecidos internacionalmente. Isso traz mais confiança para o consumidor”, explica. Entretanto, nem todos acreditam no modelo proposto pela FLO. Apesar de reconhecer que é a entidade mais confiável em atividade nos Estados Unidos e na Europa, o presidente da ONG Visão Mundial questiona a imposição dos mesmos princípios de governança para organizações de natureza diferente e de culturas diversas. “Eles querem chegar num país, como o Brasil, e impor as regras deles, mas ignoram as discussões que já existem por aqui”, lamenta. Outro empecilho é o custo para a obtenção do certificado. “Muitos produtores não tem condições de pagar para garantir esse selo de qualidade”.
Diferenças e convergências conceituais

Economia solidária, responsabilidade social e comércio justo. De tão utilizados – e, por vezes, mal empregados -, os conceitos por trás desses termos provocam confusão entre os leigos. Mesmo alguns especialistas do terceiro setor têm dificuldade em apresentar uma definição clara e precisa para cada um deles. Entretanto, há quem tope o desafio.
De acordo com Lizete Prata, presidente da Associação Mundaréu, a economia solidária tem a preocupação de organizar o processo produtivo de maneira mais ampla, sem que o projeto tenha necessariamente uma contrapartida financeira imediata. O comércio justo, por sua vez, pensa na produção a partir das necessidades do mercado. “Dessa maneira, você só atinge o objetivo se conseguir vender”, explica a gestora. Mas Lizete destaca que ambos os processos deveriam caminhar justos e “somar esforços”.
Glayson dos Santos, presidente da ONG Visão Mundial, concorda que a noção de economia solidária é mais complexa do que a de comércio justo, uma vez que está empenhada em estruturar linhas de crédito, de financiamento e de trocas, e não apenas em vender produtos. “Enquanto a primeira busca a criação de espaços totalmente alternativos, a outro acredita que pode ter uma relação mais próxima com o setor privado e traçar estratégias comuns”.
Menos radical, Rosemary Gomes, da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), avalia que o comércio justo é uma das estratégias da economia solidária, compreendida como um “mosaico de experiências e ferramentas” que visam relações econômicas mais saudáveis. A opinião é compartilhada por Verónica Rubio, que trabalha para lançar a marca Fairtrade no Brasil. Para ela, a economia solidária engloba os conceitos de comércio justo e responsabilidade social. “Não há muita diferença. Todos estão engajados em um projeto de desenvolvimento sustentável”.
A ponte da cadeia produtiva

Se os dois principais eixos do comércio justo são os produtores e os consumidores, um dos responsáveis fundamentais por conectar as duas pontas da cadeia é o supermercado. Algumas redes varejistas já demonstram certa preocupação com a responsabilidade socioambiental dos fornecedores, embora alguns especialistas acreditem que não exista essa pré-disposição.
O Grupo Pão de Açúcar, por exemplo, criou o programa Caras do Brasil, que estimula a venda de produtos provenientes de empresas “que defendem o meio ambiente e lutam contra os problemas sociais”. De acordo com a gerente do projeto, Beatriz Queiroz, o que falta para que a iniciativa seja de comércio justo “é apenas uma certificação”.
Apesar disso, a gerente diz que as lojas do grupo não vendem produtos de comércio justo que não estejam tutelados pelo programa. Para ela, os supermercados da rede devem colocar mais mercadorias quando elas ganharem uma certificação. “Se elas ainda não estão nas prateleiras do Pão de Açúcar é por mero acaso, nós não temos nada contra”, acrescenta.
A cadeia norte-americana Wal-Mart, por outro lado, garante apostar no comércio justo para promover o desenvolvimento local, por meio da geração de renda, preservação cultural e justiça social. O instituto que leva o nome da empresa apóia iniciativas de cooperativas e grupos produtores, desde a sensibilização da comunidade e orientação de como produzir até a ajuda nas vendas futuras.
O plano do Wal-Mart é distribuir os produtos nas lojas. “O importante é que as redes de supermercados trabalhem cada vez mais na cadeia de abastecimento como um todo, cobrando dos parceiros comerciais um diálogo de gestão social, para garantirmos que o produto final seja de fato socialmente correto”, defende Daniela de Fiore, gerente de assuntos corporativos.
Rosemary Gomes, da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), e Glayson dos Santos, presidente da ONG Visão Mundial, não acreditam nas boas intenções das cadeiras varejistas. Para eles, os distribuidores querem investir apenas em iniciativas seguras, por isso desejam que os produtores assumam todo o risco do processo. “Isso não é comércio justo”, ressalta Rosemary. Santos acrescenta que os supermercados procuram por grande escala e logística desenvolvida, fatores que dificilmente pequenos produtores conseguem atender. Por isso, os produtos não são competitivos no mercado. “Nós precisamos que os consumidores comecem a exigir dos supermercados produtos de comércio justo nas lojas”, reivindica.

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