O valioso pedigree da biodiversidade

O valioso pedigree da biodiversidade

por Caio Neumann

Um dos mais importantes biólogos da conservação, Thomas Lovejoy não é afeito à política das meias palavras. Muito menos das meias frases. Quando perguntado se concorda com o dado bastante difundido por organizações não governamentais ligadas ao meio ambiente, de que estamos retirando da Terra até 30% a mais de recursos do que ela é capaz de repor, ele responde solene, incisivo, consciente do poder de sua afirmação: “Na verdade, estamos retirando 50% além da capacidade de reposição. Assim não dá para continuar!”
   
Criador da expressão “diversidade biológica” – e, mais do que isso, responsável por sua inserção na comunidade científica, no início dos anos 1980 – Lovejoy não se enquadra entre os catastrofistas. É, antes de tudo, um homem de convicções fortes alimentadas ao longo de mais de 40 anos de labuta intelectual e do exercício variado de funções como a de conselheiro de Biodiversidade da Fundação das Nações Unidas e do Banco Mundial, pesquisador da Amazônia e expert em questões que vão desde a ecologia tropical às finanças políticas da conservação ambiental.
   
Taxá-lo de alarmista, portanto, não faria justiça à sua linha de raciocínio lógico, até bastante simples na essência. Para o presidente do H. John Heinz III Center for Science, Economics and the Environment, a busca incessante do mercado pelo lucro não é o principal entrave à conservação da biodiversidade. Pelo contrário. Ele enxerga essa característica como o principal mecanismo de preservação dos bens naturais. “As chances de salvar as florestas apelando ao motor do lucro têm crescido bastante nos últimos anos” – afirma.
   
Lovejoy, no entanto, admite que o mundo ainda não conseguiu calcular a riqueza implícita na complexidade dos sistemas ambientais. “É preciso perceber o valor econômico que está por trás desses serviços ou enxergar a biodiversidade como um patrimônio, uma fonte de informações. Aí sim, entenderemos a real importância dos ecossistemas e de suas riquezas”, explica.
   
Para tanto, Lovejoy defende a valoração econômica dos ecosserviços e da biodiversidade por meio da elaboração de políticas, em particular, como forma de explicitar para a humanidade a escassez desses serviços. “Sua amortização ou degradação tem custos associados para a sociedade. Se esses custos não são imputados, as políticas tornam-se equivocadas e todos sofrem devido à má alocação de recursos.” Essa, aliás, é uma das conclusões do relatório TEEB – The Economics of Ecosystems & Biodiversity, publicado em outubro de 2010 pela ONU, documento ao qual o cientista recorre frequentemente para fundamentar seus argumentos.
   
O simples discurso de que as florestas podem gerar mais valor em pé também não satisfaz o biólogo. Para ele, é necessário valorar também as inúmeras informações que cada ser vivo carrega. “Cada organismo do planeta tem um pedigree de 4 bilhões de anos”, explica. Além disso, ele defende uma maior divulgação dos ecosserviços. “Estudos do Instituto Butantan, aqui no Brasil, mostram, por exemplo, a importância das cobras peçonhentas para a nossa saúde. Além da produção do soro antiofídico, substâncias químicas presentes nesses venenos têm-nos feito avançar na pesquisa sobre problemas de pressão arterial.”
   
Botar o devido valor na biodiversidade e nos serviços ambientais, portanto, não é tarefa para poucos. Afinal – lembra, novamente recorrendo ao TEEB – “dois bilhões de pessoas pobres, no mundo, dependem dos ecossistemas e essas serão as mais prejudicadas caso a forma de enxergar os biomas não mude entre as grandes corporações”.  O cientista conclama governos, ONGs e principalmente as empresas a “se mexer para mudar o jeito de pensar e fazer negócios”. Se o que elas fazem hoje é suficiente… quem viver verá. “Mas algumas companhias já estão tentando proteger o equivalente ao mesmo montante que degradam e isso é realmente bom” – afirma Lovejoy em momento otimista, para quem duvida que ele assim o seja.
   
Acompanhe, a seguir, os melhores momentos da conversa de Thomas Lovejoy com Ideia Sustentável, em entrevista exclusiva concedida durante a Conferência do Ano Internacional da Biodiversidade promovida pelo Insituto Humanitare, em São Paulo, em dezembro de 2010.

Ideia Sustentável – Como é possível, na prática, utilizar dispositivos com base na lógica econômica de mercado para garantir a proteção e preservação da biodiversidade?
Thomas
Lovejoy – O relatório TEEB traz bons exemplos de proteção da biodiversidade por conta do seu valor. Ela tem um valor mercadológico, apesar dessa percepção ser ainda muito recente. Como mostra o documento, a valoração econômica dos ecossistemas e da biodiversidade pode deixar claro para a humanidade que esses serviços são escassos e sua amortização ou degradação traz custos associados para a sociedade. Se esses custos não são imputados, as políticas relacionadas ao tema tornam-se equivocadas e a sociedade toda sofre devido à má alocação dos recursos.
 
IS – Como as empresas e os governos podem incorporar essa visão, sendo atraídos pelo valor econômico implícito à biodiversidade?
TL –
Existe falta de conhecimento de todo o quadro, mesmo havendo uma consciência de valor. No final do ano passado, eu conversava com uma pessoa em uma posição relevante aqui no Brasil e ela não entendia o conceito: dizia que o meio ambiente é importante, mas que não deve haver preocupação com a questão por esse ângulo – o de enxergar o valor econômico implícito à biodiversidade.  Para ilustrar, em meados do século XIX, foi constatada a falta de água para abastecer a cidade do Rio de Janeiro em virtude da destruição da Mata Atlântica nos arredores da cidade. As florestas foram derrubadas para dar lugar às lavouras de café. Em 1881, o Imperador do Brasil, Dom Pedro II, ordenou a retirada dos fazendeiros e dos cafezais da região e promoveu o reflorestamento de espécies nativas, numa área que hoje compreende o Parque Estadual da Tijuca. Isso é desenvolvimento sustentável! Naquela época, não se fez uma análise econômica do projeto. Mas há 15 ou 20 anos, Nova Iorque executou algo parecido, considerando, no entanto, o aspecto econômico da questão. Os custos representaram apenas 10% do que poderiam chegar caso a restauração da biodiversidade das zonas de interesse não tivesse sido empreendida para o tratamento da água que abastece a cidade. Portanto, basta levar as pessoas a abrirem suas mentes para enxergar a vantagem da preservação da biodiversidade e a conseqüente geração de riqueza econômica. Basicamente, capturamos o levantamento de fundos para levar esses valores da biodiversidade para o cenário das decisões econômicas corriqueiras. Isso é o que o TEEB faz: mostra o valor implícito da biodiversidade e o seu peso nas decisões. Conceitualmente é bastante próximo do esforço chamado, por alguns, de “economia verde”. O Brasil está de olho nisso e tomando iniciativas, assim como a Índia. A partir do momento em que se colocam os números nos lugares certos, as coisas começam a andar. Talvez a dinâmica nunca seja perfeita, então é necessário estar sempre promovendo o respeito pela natureza. Essa visão deveria ser construída sobre um discurso ético. Porém, não temos muito tempo para debater a ética nisso tudo. De qualquer maneira, cada organismo na Terra tem um pedigree de 4 bilhões de anos e, quando se começa a pensar na situação dessa maneira, cria-se um senso muito maior de respeito e uma obrigação de rever decisões – das mais simples às mais complexas.

IS – Como as empresas, juntamente com as ONG e os governos, podem começar a pensar e trabalhar sob essa nova perspectiva de valorização da biodiversidade e dos ecosserviços?
TL –
Algumas empresas já demonstram uma nova postura. A Fibria Celulose, por exemplo, tem uma política em que a quantidade de hectares utilizada para coleta de matéria-prima deve ser sempre igual a uma área natural preservada ou reflorestada pela companhia. Essa iniciativa ilustra esse movimento, que não é exatamente novo, mas tem surgido basicamente do interesse individual de empresas. O que precisamos fazer – seja como ONGs ou indivíduos – é incentivar esses interesses individuais, por um lado, e, por outro, cobrar regulamentação por parte dos governos.

IS – O senhor acredita na possibilidade de que algum acordo vindo do mundo dos negócios poderia ser efetivo para o debate dessas questões aqui no Brasil?
TL –
Iniciativas da Vale e do HSBC, apresentados na Conferência do Ano Internacional da Biodiversidade 2010, em São Paulo (acesse a programação completa e conheça os cases no site www.humanitare.org/biodiversidade), são exemplos interessantes. Alguns atores tentam equilibrar os seus impactos e isso importa. Se esses esforços serão suficientes ou não, é outra questão. Mas integram um modelo de negócios, mais aceitável, que começa a se estabelecer. Aqueles que não entrarem nessa dinâmica poderão enfrentar problemas mais à frente. O esforço voluntário desse pequeno número de empresas, hoje, deve se transformar em comportamento generalizado para todas as corporações. Olhando para como o mundo funciona, econômica e socioeconomicamente, a grande maioria dos atores que faz as coisas andarem não é composta pelos governos, e sim pelo setor privado. Se ele não está engajado, de forma sistêmica, nunca mudaremos os paradigmas necessários. A equação é simples assim.

IS – Do ponto de vista regulatório, quais leis são necessárias e quais acordos devem partir das corporações?
TL –
Não se cria sensibilização por regulamento e nem se estimula, por lei, o senso de cuidar do meio ambiente. O mundo precisa de alguns ativos de reflorestamento. Como conseguir isso? Basicamente pagando pelo carbono ou desenvolvendo programas de estoque de carbono. Essa é uma maneira de se alcançar a preservação. Quando o mundo acordar para o valor econômico do carbono, teremos de trazê-lo de volta para o solo e mantê-lo, pois assim se gera valor econômico. Desse modo, as pessoas que têm florestas não vão querer derrubá-las. Procurarão, isso sim, oportunidade de mantê-las em pé, já que assim elas valem mais. Essa é a revolução que precisa acontecer.

IS – Há alguns lugares no mundo onde as leis sobre o tema já estão em prática? Como o senhor enxerga essas iniciativas?
TL –
A Costa Rica tem uma lei – pioneira – que garante o pagamento por serviços ecossistêmicos.  Se você tem uma pequena propriedade perto de algum recurso hídrico, por exemplo, recebe uma ajuda do governo para mantê-la preservada. Existe um projeto parecido aqui no Brasil, no Espírito Santo. O governo do Estado investiu parte dos royalties da extração de petróleo em reflorestamento. Quando se olha para a terra daquele Estado, percebe-se que ela vem sofrendo muito por conta de outras atividades econômicas, como a criação de gado. Agora, os donos de terra podem conseguir aproveitamento econômico apenas para cultivar a floresta.

IS – Na década de 1980, o senhor disse que algo em torno de 10% a 20% das espécies estariam extintas, até 2020.  Ainda acha que esse número seja atual ou ele deve ser recalculado por conta dessas novas iniciativas?
TL –
Ainda estamos em risco de chegar a um número muito próximo a esse, entre 10% e 20%. Isso não precisa acontecer. Eu esperava que fosse uma previsão e não uma projeção. Queria que o alarme inspirasse as pessoas a evitarem o pior quadro. Mas ainda é necessário muito esforço para sairmos dessa margem. Com um aumento de 1,5 a 2 graus Celsius na temperatura média global, as previsões são de que entre 20% e 30% das espécies sofram e até se extingam. Meu palpite é que a projeção esteja subestimada e que o impacto venha ser ainda maior. Estamos ficando sem tempo para reverter.
 
IS – Uma grande parcela das ONGs ligadas a movimentos ambientais afirma que estamos retirando algo em torno de 25% a 30% dos recursos naturais a mais do que o planeta é capaz de repor. O senhor concorda com isso?
TL –
Acredito que estamos retirando ainda mais, quase 50%. Assim não dá para continuar!
 
IS – Então, quais atitudes acredita serem necessárias – além das que já estão sendo tomadas – para frear essa tendência?
TL –
Realmente não precisamos de todos os recursos materiais que utilizamos todos os dias. Fazemos isso porque é economicamente barato – na verdade, mascaradamente mais barato, já que não levamos em consideração o custo ambiental. No fim das contas, o que ainda falta é ressaltar o valor econômico-ambiental implícito nos produtos. Se embutirmos tais custos, geraremos consciência e uma redefinição automática na qualidade de vida. A boa qualidade de vida é algo com que todos sonhamos, em qualquer momento. Mas se continuarmos a não enxergar esses custos para o planeta, consumindo materiais desenfreadamente, esse conceito será apenas um sonho.
 
IS – A escassez de água antes era apenas uma previsão. Agora já castiga algumas regiões e comunidades. Como enfrentar esse problema?
TL –
Alguns recursos da natureza, como a água, serão cada vez mais difíceis de encontrar. Portanto, ficarão mais caros. Em alguns lugares – como onde moro, por exemplo, no nordeste dos Estados Unidos – existe mais água do que se é capaz de consumir; mas, em outros, ela está cada dia mais escassa. A solução é simples: usar a água com mais cuidado. Temos de ter em mente que, ao consumir água, consumimos também muita energia. Em um dos meus exemplos prediletos, costumo dizer que, quando se abre uma torneira, imagina-se que apenas água sai dela. Porém, esquecemos que existe energia fazendo aquela água se movimentar, e também no seu tratamento. Além disso, muitas vezes é a energia que consome a água. Pensando no universo todo e não apenas no objeto do nosso consumo, aprendemos a utilizar com mais cuidado e há menos desperdício.

IS – Essas informações são conhecidas há bastante tempo. E apesar de algumas empresas considerarem o aspecto socioambiental de suas operações, ainda se observa resistência. Por quê?
TL –
Por conta da maneira antiga de se enxergar os negócios, baseada no velho bordão: “Cuidamos do nosso negócio, o resto é responsabilidade da sociedade civil e dos governos.” Isso ainda recorre na forma de se pensar economicamente. Mas não está mais funcionando. É muito melhor se as corporações começarem a agir por elas mesmas do que esperar que os governos as obriguem. Uma mudança sempre é menos dolorosa se acontece por vontade própria, surgindo a partir de conflitos e atritos entre diferentes pontos de vista, e não por imposição. Isso não significa que, no fim das contas, a regulamentação não seja necessária: ela é, afinal, parte importante desse processo.

IS – Segundo um estudo da IUCN – International Union for Conservation of Nature, a biodiversidade e os serviços ambientais concentram um patrimônio de U$33 trilhões…
TL –
Esse número é antigo. Quando começarmos a fazer esse tipo de valorização, da maneira como eu estou fazendo, levando em conta o conhecimento dos ecosserviços e os benefícios decorrentes deles à humanidade, o cálculo do patrimônio será ainda maior.

IS – Um fator relevante nesse assunto é que a maioria das grandes florestas encontra-se em países que têm grande desigualdade social. O que o senhor acha disso?
TL –
Essa perspectiva não confere inteiramente. Existem grandes florestas em países temperados, como os da América do Norte, Europa e a Rússia. E elas são muito importantes. Ainda assim, qualquer problema ambiental torna-se mais difícil de resolver quando a desigualdade social é muito acentuada nas comunidades do entorno. As florestas afetam os países mais pobres diretamente e muito mais rápido. Os mais ricos, muitas vezes, acabam destruindo, já que são movidos por interesses individuais. O Brasil percebeu isso e está em movimento, diminuindo essa acentuação. Os EUA não. E podem piorar a dinâmica entre interesses pessoais e coletivos, o que não é inteligente.

IS – O Programa Bolsa Floresta é um bom exemplo desse esforço?
TL –
Acho esse programa importante. Não conheço os detalhes, mas tenho certeza de que algumas coisas poderiam ser melhoradas. De qualquer modo, ele parece estar funcionando. Pagar para manter a floresta em pé é algo inteligente. Uma boa ideia, no programa é que o dinheiro vai para a mulher da família. E a história mostra que, nesses casos, a mãe ou a esposa não desperdiçam a renda familiar em coisas fúteis.

IS – Os últimos dados do INPE mostram que houve redução no desmatamento da Amazônia.  Acha que esse movimento vai continuar ou ainda assistiremos a alguns picos de degradação?
TL –
Esse declínio é fruto de fiscalização, que tem efeitos temporários. Mas outro percentual relevante na redução do desmate advém da ação de grandes empresas que não querem mais comprar produtos não certificados ou demonstram preocupação com o que é feito da floresta onde eles são produzidos. Esse movimento também tem sua origem em proprietários de terras que estão enxergando a possibilidade de lucrar com o sequestro de carbono. No passado, a taxa de desmatamento subia e descia conforme as oscilações da economia. Hoje, o movimento se extenuou. Acredito que agora a dinâmica é bastante diferente. E penso que o governo tentará fazer com que o senso de preservação “pegue” entre os proprietários.

Inscreva-se em nossa newsletter e
receba tudo em primeira mão

Conteúdos relacionados

Entre em contato
1
Posso ajudar?