Reflexão – Empreendedorismo Social: a hora e a vez do andar de baixo?

Reflexão – Empreendedorismo Social: a hora e a vez do andar de baixo?

O que pode haver de comum entre três mulheres semi-analfabetas que migraram há mais de 30 anos do Nordeste para a Favela da Rocinha, empurradas pela necessidade, e o empreendimento estratégico de um dos maiores grupos empresariais do país? E o que dizer da tentativa de sobrevivência de pequenos agricultores do semi-árido baiano em relação à estratégia de crescimento da maior indústria de processamento de óleo de palma e bio-combustível do Brasil?
Aparentemente nada a ver! Em um mundo de pobres miseráveis e ricos insaciáveis, esses dois extremos do distorcido leque brasileiro de distribuição de renda nunca teriam a oportunidade de se encontrar. Muito menos de se conhecer, de ser colocados em categorias explicativas próximas, ou de compartilhar metas e objetivos.
Entretanto, nos últimos anos, o fenômeno do empreendedorismo social vem sinalizando para a possibilidade de transformação dessas rígidas estruturas sociais que opõem o “andar de baixo” e o “andar de cima”, espremendo o “andar do meio” num transtornado cenário de conflitos e contradições.
Em diferentes regiões do mundo, o conceito de empreendedorismo deixa de ter seu significado restrito à criação de empresas capitalistas, ampliando-se para abarcar a competência de gerar alternativas organizacionais inovadoras. E elas são inovadoras, não apenas porque são modeladas em formatos divergentes daqueles adotados por empresas e corporações ao longo dos séculos XIX e XX, mas também porque ampliam sua visão estratégica para além do mercado e suas reduzidas formas de transação.
Nessa ampliação, as iniciativas dos empreendedores sociais lançam-se para horizontes bem mais longínquos do que a simples comercialização de produtos e serviços. Buscam: incrementar o desenvolvimento socioambiental de localidades esquecidas pelo crescimento econômico capitalista; tornar a sociedade inclusiva para aqueles que foram despojados das condições físicas, sociais e econômicas necessárias à sua inserção como pessoas, consumidores e cidadãos; ampliar as oportunidades para que cada qual se emancipe por sua própria conta, gerando renda e tendo liberdade para escolher o estilo de vida que prefere e também o que propiciará ao seu filho; assegurar que as gerações futuras tenham o direito de nascer e viver em liberdade e com acesso aos recursos naturais oferecidos pela biodiversidade.
Não é por simples coincidência que um banqueiro – Muhammad Yunus – recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006; ou que o encontro anual de empresários em Davos vem abrindo espaço para ouvir lideranças comunitárias e empreendedores sociais. A percepção de que o mundo rigidamente dividido é um modelo superado, encaminhando a humanidade para “becos sem saída”, estende-se por diferentes regiões, setores da economia e dos negócios, classes sociais e grupos militantes. Para alguns, superar o modelo é uma longa e complexa discussão filosófica, na qual posturas ideológicas, interesses privados e públicos se confrontam. Para outros, o caminho é mais pragmático: procuram redesenhar estruturas organizacionais no curto prazo, redefinir estratégias de relacionamento, criar alternativas de ação. Nesta vertente, alguns fundamentos se originam da visão de mundo pregressa, como a necessidade de criar organizações estruturadas, cujo funcionamento necessita de marcos legais e recursos específicos. Outros, ainda, acrescentam aspectos inovadores, entre os quais se destaca a competência de articulação institucional, isto é, de estabelecer múltiplas conexões organizacionais na forma de alianças, parcerias e redes.
O mundo acadêmico tenta seguir a evolução do empreendedorismo social para compreender sua essência e, se possível, apoiar seu desenvolvimento. Compreendê-lo com as categorias de análise da administração e das ciências sociais aplicadas à gestão organizacional é uma limitação, mas também o único caminho seguro para investigar sua multiplicidade de ocorrências.
Na Rocinha, a Coopa-Roca ilustra a iniciativa empreendedora de pessoas sem recursos financeiros, nem condições pessoais para criar um negócio. Há quase 30 anos, algumas poucas mulheres se reuniram para fazer artesanato (“fuxico”), com retalhos de tecidos. Era mais um motivo para desfrutarem do convívio das amigas do que propriamente um impulso empreendedor. Contudo, as oportunidades surgiram e não foram desprezadas. Correndo riscos, como na assinatura de um contrato de financiamento bancário sem compreensão do que estava escrito, elas ergueram a cooperativa que, atualmente, gera trabalho e emancipação para cem artesãs da comunidade. A maioria delas não tinha nenhuma fonte de renda. Hoje, recebem, em média, R$ 350,00 mensais. Seus produtos são vistos nas passarelas das fashion weeks, recebem orientação e demanda de designers internacionais e são adquiridos por consumidores do “andar de cima”.
Na década de 70, pequenos agricultores de Valente, na Bahia, enfrentavam a seca – que expulsava os mais jovens para o Sul e o Sudeste, em busca de trabalho, enquanto crianças, mulheres e idosos ficavam entregues à própria sorte. Buscavam consolo na fé religiosa, e a igreja católica local ofereceu-lhes o discurso progressista de jovens padres italianos que, em missão no Brasil, não se conformavam com as condições de extrema pobreza de seus paroquianos. Assim, nasceu a APAEB – Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira que lhes permitiu ver que poderiam unir forças para transformar em valor de produção econômica o que parecia ser um castigo divino. Aprenderam a poupar, obter financiamento, criar crédito cooperativo, obedecendo aos parâmetros das relações capitalistas de produção. Libertaram-se de intermediários, que compravam e beneficiavam o sisal cultivado, com preços extorsivos e pressões violentas. Com a emancipação financeira, criaram uma fábrica de tapetes e carpetes, agregando valor à matéria prima cultivada. E atreveram-se (!) a buscar a comercialização internacional de seus produtos. A fábrica produz cerca de 650.000m2 de tapetes e, com receita média de R$ 12 milhões, gera 600 empregos formais diretos.
Na APAEB, foi fundamental a utilização de programas sociais de apoio, como o PRONAF – Programa Nacional de Agricultura Familiar. Contudo, em condições comuns, o pequeno agricultor brasileiro não tem acesso aos serviços propiciados pelo poder público. Isolados, com baixa ou nenhuma escolaridade formal, habituados ao comportamento servil frente aos grandes proprietários de terras e indústrias, bem como às “autoridades” locais, eles não têm informações e meios necessários para conhecer as políticas públicas e acessar os instrumentos de concessão.
Em Bangladesh, quadro semelhante estimulou Yunus a privilegiar as mulheres pobres na obtenção de empréstimos a serem aplicados em atividades produtivas e na constituição de grupos sociais articulados em torno do compromisso com o Grameen Bank. Com lógica semelhante, a Agropalma, empresa que processa óleos e combustíveis a partir do cultivo de palma e palmiste, estabeleceu parcerias com pequenos agricultores do norte paraense, transformando-os em fornecedores de matéria-prima. Apoiados pelo crédito agrícola de programas públicos; assistidos por serviços de extensão agrotécnica, que aperfeiçoam as condições de trabalho e melhoram a qualidade dos produtos, os agricultores fixam-se na região, contribuindo para proteger as riquezas naturais da Amazônia – alvo da ambição de madeireiros e garimpeiros clandestinos. Além disso, a renda desses agricultores, que não ultrapassava R$ 60,00 por mês passou para R$ 750,00 em média.
Na outra ponta do país, a VCP – divisão de produção de papel e celulose do Grupo Votorantim – delineia um projeto estratégico no extremo sul do Rio Grande do Sul, vital para a expansão da companhia. Ao contrário dos empreendedores pioneiros, que invadiam as localidades com a força de seu tamanho e poder, a VCP procura se fixar na região, estabelecendo cuidadosas redes de relacionamento com as comunidades locais. Buscando parceiros de produção agrícola, também privilegiou o crédito e a orientação técnica, não apenas para obter a matéria-prima de que necessita, mas também para promover o desenvolvimento socioambiental sustentável.
Tanto as iniciativas empreendedoras que se originam em movimentos sociais e em organizações da sociedade civil, quanto aquelas promovidas por empresas e corporações privadas, têm em comum o paradigma da colaboração intersetorial. Para concebê-las e implementá-las faz-se necessário agregar recursos e esforços de diversas fontes – órgãos públicos, que podem prover as condições para ampliar a escala de atuação; o terceiro setor, com sua miscelânea de experiências, métodos e tecnologias para lidar com problemas sociais; organizações empresariais, com sua necessidade de empregar o melhor de seu conhecimento e prática de gestão.
As iniciativas empreendedoras descartam definitivamente os conceitos de assistencialismo e dependência, inserindo os de emancipação e cidadania. Não se trata apenas de modernização terminológica, mas de uma mudança radical dos valores que sustentam a atuação social. Pois não basta prover benesses ao “andar de baixo”. É preciso eqüalizar os andares no que concerne à liberdade pessoal que, como coloca Amartya Sen, é o fator condicionante para a existência de qualquer processo de desenvolvimento.
*Rosa Maria Fischer é Professora Titular da FEA/USP e Coordenadora do CEATS – Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da FIA – Fundação Instituto de Administração. Dirige no Brasil o SEKN – Social Enterprise Knowledge Network, rede constituída por 10 escolas de administração ibero-latino-americanas, coordenada pela Harvard Business School.
 

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