Reflexão – Tecnologias sociais, responsabilidade social e racionalidade econômica

Reflexão – Tecnologias sociais, responsabilidade social e racionalidade econômica

Um traço marcante da nossa economia é a subutilização de recursos. Empregos formais no setor privado são cerca de 27 milhões, num universo de 93 milhões de pessoas que compõem a PEA, e 121 milhões de pessoas em idade ativa (entre 15 e 64 anos de idade). O resultado é uma massa enorme de pessoas que sobrevivem das mais variadas maneiras, grande parte no setor informal. No conjunto, o resultado é a baixa produtividade sistêmica, e um imenso desperdício, sem falar nos dramas pessoais e sociais, inclusive de segurança. Basta lembrar que, em São Paulo, temos 27% de jovens (entre 15 e 24 anos de idade), que não estão nem trabalhando nem estudando. O palco está armado.
No plano da terra, temos como ordem de grandeza 150 milhões de hectares de terra parada ou subutilizada, imensas regiões que disfarçam o desperdício com a categoria aparentemente técnica de “pecuária extensiva”. Palestra recente de CarlosLopes, ex-representante das Nações Unidas e hoje assessor direto de Kofi Annan, indicava que hoje o Brasil dispõe do maior estoque de terras agrícolas paradas do mundo. Segundo o IBGE, são 72 milhões de pessoas inseguras quanto à comida do amanhã, enquanto centenas de milhares de pessoas pedem terra para cultivar.
No plano das nossas poupanças, não andamos melhor. Com um volume de crédito da ordem de um quarto do PIB, utilizamos menos da metade do que se usa em outros países. Pior ainda, os juros nos bancos comerciais – porque a Selic, com uma taxa real de 11% não é mais um drama central – atingem níveis estratósféricos. A Folha de São Paulo de 9 de março apresenta um pequeno balanço dos juros praticados no mercado: 63% para capital de giro, 94% para empréstimo pessoal nos bancos, 103% no comércio, 156% no cheque especial, 220% no cartão de crédito, e 272% no empréstimo pessoal nas financeiras. Segundo o mesmo jornal, em 5 de junho, “no ano passado, o lucro líquido de 127 bancos – responsáveis por 96% dos ativos totais do sistema – somou R$65,47 bilhões, um aumento de 38% em relação a 2004”. O desvio das poupanças para aplicações financeiras limita o acesso ao financiamento simples e barato indispensável para dinamizar pequenas atividades produtivas de desenvolvimento local.
O que isto tem a ver com tecnologias sociais e racionalidade econômica? Basicamente, constata-se que a economia do país está organizada para um terço da população, a mais próspera, para grandes empreendimentos, e para a grande finança, todos utilizando tecnologia avançada, intensiva em conhecimento e em capital. Quem não está “dentro” do processo, estaria simplesmente sofrendo de um problema individual, não possuindo o que se chama hoje de “empregabilidade”. Abriremos mais cursos técnicos, e essas pessoas serão “empregáveis”. Poucos se iludem com esse tipo de solução fragmentada. Fazer funcionar o andar de baixo da economia envolve soluções criativas.
Um exemplo interessante é programa Prove. Consiste em dotar o pequeno agricultor de um mínimo de equipamento para não vender o seu produto em bruto, quando os preços estão no chão, mas já minimamente transformados: farinha de mandioca em vez de mandioca e assim por diante. Desmontado no Distrito Federal pelas nossas descontinuidades políticas absurdas, desenvolve-se em vários outros Estados, inclusive em outros países. Outro exemplo é o da região de São Joaquim, que era a de IDH mais baixo de Santa Catarina, onde pequenos produtores, organizados em cooperativas, fizeram parcerias com universidades que ajudaram a definir a vocação econômica regional. Hoje é uma das regiões de mais rápido crescimento do país. A cidade carioca de Piraí, para dar outro exemplo, montou o programa Piraí Digital, que assegura acesso a internet em banda larga para todos no município, generalizando ganhos de produtividade e atraindo empresas. Pequenos produtores com acesso internet compram melhor e expandem as vendas. O acesso em bairros pobres muda o comportamento. Outro exemplo ainda nos vem de Caxias do Sul, em que pequenos produtores se organizaram em cooperativas, e criaram uma Agência de Garantia de Crédito, que junta os numerosos pedidos de pequenos empréstimos, e os transforma num pacote, evitando aos intermediários financeiros a constituição de inúmeros cadastros. A AGC levantou 14 milhões de reais de contribuições de prefeituras e do BID, e calculando não mais de 5% de inadimplência, com 14 milhões passam a garantir 280 milhões em créditos.
Estes exemplos – e há inúmeros outros como o projeto Um Milhão de Cisternos da ASA, as iniciativas do Grupo de Trabalho Amazônico etc. – mostram o leque das tecnologias sociais: instalações e pequeno equipamento no caso do Prove, tecnologia organizacional no caso de São Joaquim, conectividade que gera economias externas para todos os agentes econômicos no caso de Piraí, novas arquiteturas financeiras no caso de Caxias do Sul.
Precisamos conectar os dois raciocínios: os recursos subutilizados e tecnologias simples que possam facilitar a inserção produtiva da base do país. É ver o drama da exclusão pelo prisma positivo do leque de oportunidades que oferece, do horizonte interno de expansão econômica pela inclusão. Não há dúvida que as empresas podem encontrar um papel extremamente útil ao ajudar, cada uma na sua região, a generalizar iniciativas como essas que dinamizam outro tipo de mercado, e geram um círculo virtuoso de crescimento. Ao invés de cada empresa apenas defender a sua fatia de mercado, ampliar o mercado como um todo.
Não há dúvida que uma série de iniciativas como o bolsa família, o aumento do financiamento ao Pronaf, o microcrédito, a melhor capacidade de compra do salário mínimo, o Prouni e outras, ajudam todas a tirar o segmento mais pobre da população de uma marginalização obscena em termos éticos e burra em termos econômicos. Mas para irmos além da distribuição de renda, temos de criar dinâmicas de inclusão produtiva.
Esta opção implica gerar processos integrados de desenvolvimento local, envolvendo parcerias entre os diversos agentes, prefeituras, organizações da sociedade civil, sindicatos, empresas e universidades. O reequilibramento econômico gerará melhor qualidade de vida para todos. A maré tem de levantar todos os barcos. Os que se concentram em administrar privilégios são espertos, mas precisamos mesmo é de gente com visão e generosidade.
Ladislau Dowbor é professor titular em economia e administração da PUC de São Paulo, assessor de várias instituições da sociedade civil, e autor de numerosos estudos, disponíveis em http://dowbor.org

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