Domenico De Masi

Domenico De Masi

Os netos de Keynes somos nós
Por Marília Arantes

Sustentabilidade é uma expressão com a qual Domenico De Masi não concorda, por definição. Para o sociólogo italiano, defensor do “ócio criativo” (conceito que coloca a plenitude da vida humana na intersecção entre trabalho, estudo e diversão), “desenvolvimento sustentável, literalmente, significa algo que possa ser prolongado. E, se seguirmos o ritmo atual, o desenvolvimento se esgotará”, afirma.

Divergências terminológicas à parte, De Masi aposta na criatividade como elemento vital para a transformação de paradigmas – imprescindível à transição para um novo modelo de desenvolvimento, que prefere chamar de “economia criativa”.  Este, aliás, será o tema de seu próximo livro, que pretende publicar antes no Brasil do que na Itália. Sobretudo porque acredita no país como o grande protagonista desse novo modo de vida. “No mundo todo, tenta-se criar um novo modelo. O Brasil está em vantagem para isso. É uma democracia que cresce, reduz distâncias sociais e não está em guerra com ninguém”, explica.

Para De Masi, além da boa fase econômica, o Brasil carrega valores positivos de forma única. Mas alerta para um problema que supõe estar subestimado: o desemprego. “A tecnologia reduz a necessidade de trabalho. A cada vez que se introduz uma inovação nesse campo, deveríamos reduzir o horário de trabalho para todos. Se não, o pai vai trabalhar 10 horas por dia e o filho vai ficar desempregado.”

Em passagem por São Paulo, para um bate-papo aberto ao público sobre economia criativa, promovido pela Associação Paulista Viva, o sociólogo não perdeu a oportunidade de exercitar seu lado provocador: “Para fazer uma economia criativa e sustentável é necessário que os bancos não roubem! Isso é economia sustentável!”, disparou, em pleno corredor financeiro da cidade.

Em conversa reservada com Ideia Sustentável, De Masi defendeu um modelo de desenvolvimento que respeite o meio ambiente e os recursos finitos do planeta – dentre eles, o trabalho. “Em 1930, John Mainard Keynes (criador do keinesianismo ou Estado de Bem-Estar Social, teoria que defende a intervenção do Estado na economia) escreveu Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos, obra em que projetava que, 100 anos adiante, deveríamos trabalhar por cinco dias da semana, durante três horas cada um – ou teríamos o desemprego. Os netos de Keynes somos nós! Precisamos pensar nisso”, desafia.

Essa e outras ideias do polêmico sociólogo italiano, você confere a seguir.

Economia criativa

Por economia criativa podemos entender várias coisas. Para mim, trata-se de uma economia que não repete os mesmos paradigmas, mecanismos e modalidades que estão levando à grande crise do capitalismo. Neste momento, a economia está muito dividida. Da primeira vez em que estive no Brasil, há quinze anos, a Europa encontrava-se em euforia e o Brasil na depressão. Hoje é o oposto. Existem duas economias criativas, uma para a euforia, outra para a depressão. Na depressão, a criatividade consiste em encontrar um modo para se enfrentar o decrescimento de forma serena. Na euforia, como vive o Brasil de agora, a economia deve ser criativa a ponto de crescer sem cometer os erros que nós, europeus, cometemos. Seguimos o capitalismo americano, que se baseia em alguns princípios: acreditar que o crescimento é infinito, promover uma grande competição entre as pessoas e um consumismo resultante de um mecanismo diabólico – a publicidade e a mídia -, que desperta necessidades inúteis. Os bancos financiam a aquisição desses bens inúteis e as empresas produzem bens ativos que logo se tornam obsoletos. Por exemplo, agora quem tem um iPhone 4 deseja um iPhone 5 e nem sabe por quê.

Publicidade e mídia

É preciso entender o mecanismo com que opera a publicidade. O ser humano funciona em uma esfera racional e uma emotiva. A racional é a do conhecimento e da habilidade. A emotiva, da opinião, das relações e dos sentimentos. A publicidade busca capturar a esfera racional com promessas, provas e demonstrações. E conquista a esfera emotiva criando apelos e atmosferas. Tudo isso vem nos níveis consciente e inconsciente. Quem faz publicidade usa um aparato científico e tecnológico potentíssimo. Quem se submete a ela está completamente desarmado, portanto é sempre uma relação de injustiça – tolerada pelo capitalismo porque serve para induzir necessidades inúteis. Necessidades reais não precisam de publicidade!  Quem tem dor de dente procura o dentista, sem publicidade. O único benefício é para o publicitário! Ela só é criativa quando devolve aos consumidores algo equivalente ao que tirou. Sou amigo e trabalho com o publicitário Oliviero Toscani. Ele já não faz propaganda para produtos, mas para causas sociais. A publicidade da marca Benetton, por exemplo, era contra a pena de morte, a máfia, pelo acolhimento dos imigrantes. Uma publicidade sem denúncia é inútil para o consumidor; desperdício de dinheiro. Se explicitasse a miséria ou a pena de morte, o efeito para o anunciante seria igual, porém teria um grande valor difundido. Os publicitários devem repensar sua função criativa, que deveria ser a de divulgar valores positivos.

Trabalho: um recurso finito

Em lugares onde se trabalha demais, fica-se sem trabalho. Foi assim na Europa, na América, no Japão e será também no Brasil. Aqui, segundo o jornal britânico Financial Times, há uma taxa de 4,6% de desemprego. Ainda que oficialmente seja mais, algo em torno de 6%, seria um dado falso. Tem muita gente desempregada no Brasil, principalmente nas favelas. O desemprego sempre existe onde alguns trabalham muito. Porque o trabalho é um recurso finito, e que se reduz cada vez mais. Os computadores, telefones e iPads reduzem a necessidade de tipógrafos e jornaleiros. Ou seja, a tecnologia reduz a necessidade de trabalho. Eu, que sou napolitano, acho isso positivo. Também deve ser para os brasileiros. Mas, cada vez que se introduz uma nova tecnologia, deveríamos reduzir o horário de trabalho para todos. Se não, o pai vai trabalhar 10 horas por dia e o filho vai ficar desempregado. Quando a tecnologia era mecânica, produziam-se mais postos novos de trabalho do que o número de antigos que se perdiam. Hoje, com a tecnologia eletrônica, os trabalhos novos destroem mais do que criam.

O modelo brasileiro

Na euforia, o Brasil também está se guiando pelo caminho do consumismo. Com certeza isso é negativo, porque logo depois vem o decrescimento. Mas o país tem seus pontos de força. Primeiro, porque o Brasil é brasileiro! Isso significa que alguns valores são muito fortes, mais do que nos Estados Unidos e na Europa. Por exemplo, o acolhimento, um pouco mais de solidariedade, de alegria e sensualidade também.

Este é um momento de transformação geral. Nunca fomos tão globalizados, o mundo muda contemporaneamente. Pela primeira vez na história da humanidade, deveria ocorrer um modelo de vida único ao planeta. Assim como os iPods ou as novelas funcionam como modelos, precisamos de comportamentos comuns a todos. Esse modelo ainda não existe. Quem deve criá-lo? Como? A primeira coisa seria estudar o que se fez até agora. O modelo hinduísta é muito válido na Índia. O confuciano, ainda muito importante na China. O islâmico vale para milhões de pessoas. O greco-latino funcionou até o Renascimento, em 1600. O iluminista, elaborado durante o século dezoito. O industrial, de 1900, nasceu na Inglaterra, espalhou-se pela Alemanha, França e  Estados Unidos, até a Segunda Guerra Mundial. E temos o modelo pós-industrial, deflagrado nos Estados Unidos, Europa e Japão, nos últimos cinquenta anos.

O Brasil, por exemplo, copiou por 450 anos o molde europeu, e por outros 50 anos o americano. Agora, ambos estão em crise. E qual é o modelo brasileiro de agora? De onde copiaremos? Precisamos criar o modelo brasileiro! Imagino que o que surgir aqui poderá ser útil para todo o mundo. De outra parte, há também um dever moral, porque o Brasil foi credor dos formatos desenvolvidos na Europa e nos EUA. Agora é preciso restituir, devolver. Não estou falando de riqueza material, mas modelos de vida, que também podem ser péssimos. O Brasil captou da Europa e dos EUA tanto coisas positivas como negativas. Creio que, agora, o país está em vantagem para inovar. A China não é uma democracia. Embora o produto bruto cresça e as desigualdades sociais diminuam, acredito que um modelo ideal só poderá nascer em um país democrático. A Índia é uma democracia e cresce, mas não está em paz: internamente ocorrem guerras raciais, conflitos com o Paquistão. O modelo europeu e o americano, neste momento, decrescem, e as desigualdades sociais aumentam. Só o Brasil, portanto, configura-se como uma democracia que cresce, reduz distâncias sociais e não está em guerra com ninguém. Portanto, há uma grande distância entre o Brasil e os outros países.

Um novo modelo econômico já foi criado no Brasil, de alguma forma, sem que se desse conta. Há trinta anos, havia aqui uma grande crise, uma inflação altíssima. Dois presidentes importantes vieram em sequência: um resolveu o problema da inflação; o outro distribuiu essa riqueza. Se tivesse sido o oposto, se Lula assumisse o governo antes de Fernando Henrique Cardoso, creio que poderia ter sido um desastre. Portanto, o Brasil já tem um modelo econômico que consiste em alternar produção de riqueza, investimento e distribuição. Isso é mais fácil se ver de fora, do exterior.

Brasil criativo

Neste momento, o Brasil destaca-se em várias formas e expressões de criatividade estética: produz de aviões a design, tem estilistas, cineastas, teatros,  uma importante televisão, universidades muito melhores do que as italianas e francesas. Uma USP, por exemplo, não existe em Roma. Sou professor na maior universidade italiana, a Sapiência, infinitamente mais feia e desorganizada do que a Universidade de São Paulo. Em todo o Brasil, há escolas extraordinárias: em Manaus, Porto Alegre, Curitiba. Há as escolas elementares de Foz do Iguaçu e um projeto para o acesso de 30 mil crianças pobres às melhores escolas do mundo. O balé Bolshoi Brasil, em Joinvile, também atende crianças pobres. O país já tem muita excelência. Se houvesse uma vitrine para expor o que é o Brasil para o mundo, assim como a 5ª Avenida é para Nova Iorque, o país deveria mostrar suas coisas excelentes. E como se faz para saber se a coisa é excelente? Esse é o problema!

O Brasil começa agora a ter autoestima. O perigo é ficar como a Itália, com autoestima demais porque pariu Michelangelo! Por sorte, o Oscar Niemayer ainda está vivo! Mas o Michelangelo, já faz tempo… O contexto intelectual é muito importante. Encontramos gente criativa e ficamos mais criativos! Trabalho essa ideia no livro A Emoção e a Regra. Brasil e Itália não têm muita criatividade científica; a nossa é mais humanística.

Sustentabilidade

Sustentabilidade é traduzida de modo errado para o português. Desenvolvimento sustentável, literalmente, significa um desenvolvimento duradouro, que possa ser prolongado. Como se pode ter desenvolvimento sustentável numa cidade de 18 milhões de pessoas que poluem? Na avenida Paulista, sobretudo, estão os bancos. Para fazer uma economia criativa e sustentável é necessário que os bancos não roubem! Isso já é economia sustentável. Neste momento, o mundo está numa crise horrível, criada pelos bancos. As grandes instituições financeiras não são vítimas; representam uma carnificina. Há um ditado que diz: “Não se pode curar um dedo se todo o corpo está doente”.

O que podemos fazer, então, é criar um modelo positivo de desenvolvimento sustentável para ser demonstrado, por exemplo, na avenida Paulista, uma avenida-star, símbolo, como é Veneza, na Itália, ou a 5° Avenida de Nova Iorque. Nesse sentido, seria importante se conseguíssemos propor um modelo de desenvolvimento duradouro. Mas, hoje, green economy na Paulista é contrassenso, não funciona. Tem de ser feita na Amazônia! Se esse novo modelo urbano compreender a energia solar, por exemplo, aí sim! Porém, eu não chamaria isso de green economy, ou sustentabilidade, mas de uma economia baseada na produção autônoma de energia.

Novo paradigma

Entre as barreiras para o novo estão o hábito e o poder. Quando se mudam as organizações, mudam-se também as pessoas que têm poder. E ninguém quer perder o poder. Com isso, nossas sociedades acabam tendo um nível muito alto de gente velha, com os jovens e as mulheres sendo prejudicados. Mesmo assim, o Brasil, para os europeus, aparece como um país mais jovem. Embora seja conservador, por ser latino. Toda a América é conservadora. Se observarmos o programa de governo do Barack Obama (presidente dos Estados Unidos) ou do candidato que disputou as eleições com ele, nota-se que são muito parecidos: não propõem reformas que ultrapassem o paradigma europeu.

Acho muito importante pensar em um novo modelo e no que é novo de fato. Estamos organizando um intercâmbio para repetir aqui anualmente. Entre 20 e 22 de março de 2013, acontecerá uma convenção parecida com a que organizo em Ravello, na Itália, no belo auditório cujo projeto ganhei do Niemeyer de presente. Juntaremos intelectuais e empreendedores, empresários, brasileiros e italianos, para imaginar um novo modelo de vida partindo da experiência brasileira.

Gosto de uma frase importante de Gilberto Freire: “Eu não quero escrever um romance, quero criar um estilo”. O agir cotidiano é o modelo de vida, o grande paradigma com o qual a pessoa se relaciona. Como há o modelo de vida cristão, budista ou chinês, pouco a pouco vamos desenvolver o brasileiro. Isso não se cria de um dia para o outro. O modelo industrial levou 200 anos para ser construído! Sobretudo, temos de respeitar o meio ambiente. Os recursos do planeta são determinados, eles acabam. Não se pode ter um desenvolvimento infinito num mundo finito. Da mesma forma, o trabalho também é finito. Em 1930, Keynes escreveu Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos. Os netos de Keynes somos nós! Em um texto de dez páginas, sua projeção era de que, para que todos tenhamos trabalho, devemos trabalhar por cinco dias da semana, durante três horas cada um – ou teremos o desemprego.

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