Réplicas – O mundo não é preto-e-branco

Réplicas – O mundo não é preto-e-branco

As idéias de Edgar Morin, um dos mais importantes pensadores do final da segunda metade do século 20
Foto: José Cordeiro
Crítico severo à fragmentação do conhecimento, o francês Edgar Morin, um dos mais importantes pensadores do final da segunda metade do século 20, acredita que analisar um assunto individualmente, sem levar em conta seu contexto, é como “enxergar apenas uma cor do arco-íris”. Sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo, Morin já escreveu, em seus 86 anos de vida, mais de 30 livros, com reflexões sobre os temas mais diversos, como educação, amor, felicidade, linguagem e política.
Engajou-se politicamente primeiro na Guerra Civil Espanhola, entre 1936 e 37. Pouco depois, fez parte da resistência francesa ao nazismo na Segunda Guerra Mundial e foi membro do Partido Comunista Francês, do qual acabou expulso, mais tarde, pelos artigos questionadores que publicava em jornais nacionais. Foi alvo de dupla perseguição, como judeu e comunista. Nascido de uma gravidez de risco, Morin sofreu muito, aos dez anos, a morte da mãe, que possuía saúde frágil. Desde então, tornou-se aficionado pelo cinema e pela literatura.
Sua sensibilidade sempre fez com que enxergasse as questões da humanidade como uma matiz, e não um cenário monocromático, sempre procurando pontos de vista que fugissem dos extremos maniqueístas. Sua visão sistêmica de conhecimento humano fez com que ficasse conhecido, nas últimas décadas, como pensador da educação. Porém, ele rejeita todo tipo de rótulo. Em um de seus livros publicados no Brasil, “Os sete saberes necessários à educação do futuro”, amplamente utilizado pela comunidade pedagógica, Morin trata do futuro da humanidade na virada para o século 21, refletindo sobre várias questões complexas sobre a formação humana.
A primeira vez de Morin no Brasil já tem 46 anos. Foi em sua viagem pela América Latina. Na ocasião, encantou-se com a cultura indígena e afro-brasileira. Com sua segunda esposa, a artista plástica Joahnne, voltou diversas vezes ao País. Em 1968, além de ministrar um curso na Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, Morin observou os reflexos dos movimentos estudantis europeus e americanos no Brasil. Nas visitas à nação, era recepcionado nos aeroportos de São Paulo, Fortaleza e Salvador por comitivas de jovens grevistas. Depois disso, voltou ao País em 1996 e 1998 para ministrar cursos e participar de discussões.
No final de 2007, Morin retornou novamente e falou para um auditório lotado do SESC Pinheiros sobre o tema “A Humanidade no século 21”. As declarações abaixo são trechos da palestra do filósofo francês e partes de entrevista exclusiva à repórter Carmen Guerreiro, na ocasião.
Globalização
Há um duplo processo. A unificação do mundo provoca novos antagonismos entre Estados, ideologias e religiões. Neste paradoxo, o mundo é, ao mesmo tempo, globalizado e fragmentado em vários pedaços. A globalização traz processos antagônicos, como a democratização e os direitos civis, em contraposição ao domínio econômico das potências. Porém, todas as partes do mundo são relacionadas de modo inseparável, pois todos os seres humanos e comunidades vivem as mesmas ameaças coletivas e os mesmos problemas de vida e morte, como a disseminação das armas de destruição de massa e a degradação ecológica.
Comunidades de destino
Chamo as condições nas quais todos vivemos juntos de “comunidade de destino”, ou seja, com um destino comum. Criou-se uma estrutura de sociedade-mundo, em escala planetária. Para que haja uma sociedade, porém, é preciso que exista um território onde as comunicações sejam mais intensas e numerosas, e uma economia, que hoje é globalizada, mas não regulamentada a nível mundial. Os Estados são incapazes de controlar isso. Falta a consciência de destino comum. Só assim seria possível que a comunidade de destino existisse. As nações devem continuar a prosperar como unidade, porém não devem ter um poder soberano absoluto que as fizessem recusar medidas de proteção necessárias a todo o mundo ou desencadear guerras de acordo com sua vontade.
Humanismo
O humanismo tem um sentido primeiro, refletido na fórmula de Terence [Publius Terentius Afer, dramaturgo romano], que dizia “Eu sou homem e nada do que é humano me é estranho”. É a idéia de que, apesar de termos diferenças de língua, raça, cultura, devemos considerar todos com o mesmo respeito com o qual nos dirigimos ao nosso próprio povo. O humanismo é o reconhecimento da universalidade do valor humano, qualquer que seja sua origem. Montesquieu [político, filósofo e escritor francês] diz que se alguma coisa é favorável sua pátria e desfavorável à humanidade, não deverá ser executada, e vice-versa.
O planeta é um jardim
A idéia de que o Homem deve conquistar o universo ruiu e devemos rejeitá-la de qualquer forma. Descobrimos que a vontade de possuir e manipular o mundo terrestre e os seres vivos, que finalmente triunfamos, nos levou à destruição da biosfera. Por isso, devemos rever nossa relação com a natureza. Por outro lado, se dominamos os recursos terrestres, hoje é evidente que o Sol não está no centro do universo, mas é apenas um ponto no espaço. Então como é possível pensar que a humanidade pode conquistar o universo? Devemos cultivar nosso jardim, mas não da forma como a obra Candide, de Voltaire, define – cuidar do espaço como se faz com seus negócios e suas coisas. Precisamos cultivar a Terra para fazer dela nossa casa comum.
Soberania nacional
Quando houve o Tsunami no Sudeste Asiático, o humanismo levou todos a agirem de maneira solidária. Hoje temos um conceito que pode tomar formas concretas, com tantas ONGs, a exemplo dos Médicos sem Fronteiras. O obstáculo é que os Estados-Nação tornam impossível o exercício desse humanismo. Não podemos obter dos Estados tirânicos a cessão de sua tirania. Ficamos totalmente impotentes. O grande problema é como superar a soberania absoluta dos Estados nacionais ao mesmo tempo em que os conservamos, é claro.
Totalitarismo da tecnologia e medicina
Eis uma promessa e uma ameaça ao mesmo tempo, com a capacidade de clonar e fazer quimeras, monstros que jamais existiram, com o desenvolvimento dos mecanismos cerebrais. Assim, podemos imaginar um novo totalitarismo, não como o do século 20, mas um regime com o controle de todos os seres humanos por meio da tecnologia e da manipulação cerebral.
O futuro pela metamorfose
As probabilidades de um futuro para a humanidade são catastróficas. Quando o sistema não consegue lidar com problemas, ou desintegra-se, ou é capaz de suscitar uma transformação e criação de um novo sistema mais rico. Como uma crisálida que começa a se auto-destruir para construir uma borboleta. É um processo de metamorfose que dá chance a um novo tipo de vida, com harmonia, mais liberdade e comunidade. Temos talvez essa chance no planeta, mas há também a possibilidade da metamorfose produzir algo ruim. Por isso hoje estamos na incerteza em relação àquilo que vai ocorrer.
Conhecimento
Todo o conhecimento produzido pela humanidade é fragmentado, pois não conseguiu atingir o nível de sociedade do conhecimento – uma sabedoria comum que nos permitiria conhecer problemas vitais planetários. Nunca tivemos tanto conhecimento sobre o Homem e, ao mesmo tempo, nunca soubemos tão pouco. Cada um prioriza um tipo de conhecimento, e isso é um risco mortal, porque leva à cegueira em relação aos outros pensamentos. Por isso há a necessidade da reforma dos saberes e do conhecimento para tratar nossos problemas, um movimento capaz de entender a complexidade do universo e de seus processos. Se isso não acontecer, acredito que estamos perdidos.
Educação e aquecimento global
Atualmente não podemos prever o que deve ocorrer em relação ao aquecimento global. A situação demanda uma ação corajosa de nível internacional que, no momento, acho impossível de acontecer. Quanto mais o perigo cresce, mais tomamos consciência. Penso que a Educação deve oferecer todos os elementos que permitam a tomada de consciência da situação do planeta.
Criatividade como esperança
Hoje as promessas e ameaças são inseparáveis, e as razões de desesperar são inseparáveis das razões de esperar. Um dos princípios da esperança tem a ver com as possibilidades criadoras intrínsecas aos seres humanos. Hoje, porém, a capacidade de criação se manifesta apenas nos artistas, inventores, pensadores, mas faz parte de todos. São, porém, inibidas como as células-tronco. A criatividade dorme. Sempre que estamos em crise, assassinamos as possibilidades de inovar. Criação e destruição aparecem simultaneamente, pois é necessário destruir o mundo velho e criar um novo mundo.
Capacidade humana
Estou convencido de que estamos ainda na pré-história do espírito humano, Einstein dizia que apenas 15% da mente humana é utilizada por nós. Há muito que ainda não foi desvendado, a considerar pelo fato de que ainda temos o mesmo cérebro do homem das cavernas. Era o mesmo cérebro de Mozart, Proust, Beethoven. Porém eles não sabiam de suas possibilidades, assim como nós não sabemos hoje do que somos capazes. É um outro princípio de esperança. Temos essa possibilidade de revolução cognitiva que pode nos fazer capazes de um pensamento mais rico e complexo, e por isso mesmo deve contribuir para soluções, se não as melhores, pelo menos as menos piores.
Mudança
No futuro, o improvável acontece no lugar do provável. Será que nossa imaturidade pode ser superada? É possível, ainda que improvável. Os grandes movimentos, entretanto, começam de forma pequena. O cristianismo e o islã começaram com um profeta e ambos se transformaram em fenômenos gigantescos. Isso mostra que devemos esperar o improvável. Jovens vêm me dizer que não temos nenhuma causa hoje em dia pela qual lutar, como eu tinha na minha época. Eu digo: sim, vocês têm a causa mais gigantesca, que é o seu destino. É preciso que consideremos o futuro com a possibilidade da esperança.

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