Tendências – Descobrindo o segundo setor e meio

Tendências – Descobrindo o segundo setor e meio

De uns anos para cá, algumas organizações sociais têm escolhido uma lógica de gestão privada com o objetivo de buscar sua sustentabilidade

Segundo o pesquisador Lester Salamon, do Instituto Johns Hopkins (EUA), a sustentabilidade é um dos desafios mais importantes do terceiro setor em todo mundo. No Brasil, este desafio tem se mostrado ainda mais complexo para a maior parte das 276 mil organizações hoje existentes. Em sua grande maioria pequenas, com estrutura precária e gestão pouco profissionalizada, essas entidades disputam entre si os recursos financeiros decorrentes de verbas públicas, doações de indivíduos e empresas e de agências de cooperação internacional. Poucas são as que conseguem gerar recursos próprios mediante, por exemplo, a venda de serviços. E, entre estas, raras são as que escolheram uma atividade sustentável em si, capaz de se manter produzindo empregabilidade e desenvolvimento econômico para as comunidades às quais desejam servir. Nem sempre tão bem vistas pelas organizações com perfil mais caritativo, as que se sustentam em empreendimentos sociais com capacidade de gerar recursos financeiros talvez constituam uma nova categoria, um meio termo entre o segundo e o terceiro setor, uma espécie de “segundo setor e meio”: nascem para atingir finalidades públicas, mas para tanto escolhem uma lógica de gestão privada com o propósito de se tornarem auto-suficientes.
“No final dos anos 1990, começamos a trabalhar a idéia de que organizações da sociedade civil poderiam desenvolver projetos de geração de renda para a sua sustentabilidade com o apoio de uma ferramenta de plano de negócios adaptada ao setor social”, observa Vivianne Naigeborin, diretora internacional de Parcerias Estratégicas da Ashoka, organização internacional de apoio ao empreendedorismo social e organizadora do Prêmio Empreendedor Social Ashoka-McKinsey. “Em 1999, fizemos um projeto-piloto do prêmio e convidamos sete empreeendedores associados à Ashoka para avaliar se a ferramenta era útil. Para nossa alegria, ela funcionou.” Prova da eficiência do “novo modelo”, a Ashoka recebeu, nos primeiros dois anos de concurso, surpreendentes 600 inscrições de entidades fundamentadas em projetos de geração de renda, para elas próprias e também para as comunidades assistidas.
Avaliação realizada pela organização, em 2003, concluiu o que os seus dirigentes já vinham percebendo na prática: as organizações cuja intervenção social estabelece-se em torno de um negócio obtêm muito mais êxito na implementação do seu plano. Um exemplo interessante é o da APAEB – Associação dos Produtores do Município de Valente, na Bahia, criada com o objetivo de qualificar a produção de sisal da região e organizar os produtores locais visando a melhorar a qualidade de vida da comunidade muito pobre. Atualmente, gera 920 empregos diretos, beneficiando 3.800 famílias em 16 municípios. “De modo geral, consideramos o planejamento como muito importante, mesmo sabendo das necessidades constantes de monitoramento e adequação”, explica o fellow da Ashoka Ismael Ferreira de Oliveira, um dos idealizadores da associação e atualmente o seu diretor-executivo. Quando a APAEB iniciou os trabalhos em 1980, não era diferente da maioria das organizações de terceiro setor: a totalidade de suas receitas advinha de doações. “Em 25 anos de trabalho, temos planejado dia-a-dia a auto-sustentação financeira com base em nossa capacidade produtiva. Sabíamos que a cooperação internacional não nos apoiaria tanto tempo. Em 2004, 4% do orçamento geral veio da cooperação e o restante, dos projetos produtivos”, comemora.
Origem no assistencialismo
 
Originárias no Brasil das ações sociais de natureza assistencialista, administradas normalmente por leigos em gestão, as organizações da sociedade civil nascidas nos anos 1970 e 1980 sempre tiveram sua existência condicionada às pequenas doações de recursos financeiros de governos, de empresas e de indivíduos, muitos dos quais transformados também em voluntários de serviços. É um modelo que ainda hoje serve bem para inúmeras organizações em todo o país. A partir dos anos 80, fundações e organismos internacionais passaram a constituir uma outra alternativa de fonte de financiamento, principalmente para organizações ambientais e movimentos tidos como politizados, como os relacionados a mulheres e negros.
Em meados dos anos 1990, ocorreu no Brasil um impressionante movimento de expansão do terceiro setor, identificado por meio de recente pesquisa do IBGE. Com o aumento do número de organizações privadas para fins públicos, ampliou-se significativamente a demanda pelas doações de pessoas e empresas, pelas verbas públicas e pelo financiamento de agências internacionais, fazendo com que tais entidades, despreparadas para o novo quadro, começassem a competir pelos mesmos recursos. “Além disso, também na década de 1990, estados, municípios e o Governo Federal, financiadores de sempre das atividades das organizações sociais, tiveram de enxugar gastos. Os recursos públicos diminuíram e a concorrência aumentou”, lembra a consultora Cristina Murachco, especializada em organizações da sociedade civil. Este complexo cenário explica, em larga medida, o interesse cada vez maior pela adoção de ferramentas de gestão (como planejamento, avaliação, projeto, comunicação e marketing e captação de recursos), a busca de novas alternativas para a sustentabilidade e a ascensão de conceitos antes restritos ao universo dos negócios, como resultados, eficiência, eficácia e efetividade
Segundo a consultora, foi nessa época que o Brasil começou a ser visto pelas organizações financiadoras estrangeiras como um país rico e com capacidade de geração de recursos internos. Parcela expressiva do dinheiro do exterior que aportava em organizações nacionais de defesa de direitos acabou tomando o rumo de países africanos e do leste europeu, considerados mais frágeis e mais carentes de financiamento internacional. Algumas agências de cooperação internacional deixaram o país. Contrária à corrente, a Oxfam, por exemplo, com sede na Inglaterra, atuação no Brasil desde 1958 e escritório em Recife desde 1968, ampliou a sua permanência, expandindo-se para Brasília. Focada no combate à pobreza, apóia hoje 50 organizações brasileiras, entre as quais a Ashoka, a Abong e o Ibase. “Nas atuações locais, a Oxfam se posiciona como parceira das organizações, substituindo a linha de frente pelos bastidores”, diz Janaína Jatobá, coordenadora do Programa de Mobilização de Pessoas e Recursos. A Ashoka, por exemplo, recebe apoio da agência para a capacitação em planos de negócios dos empreendedores candidatos ao Prêmio Empreendedor Social.
Um futuro sem divisões
 
Para Viviane, da Ashoka, o mais provável é que, no futuro, não venham a existir mais fronteiras tão delineadas entre segundo e terceiro setores. A tendência é haver um espécie de simbiose entre lógicas e valores privados e público-privados tanto na gestão quanto nos resultados finais. “Estar no segundo setor privado não significará somente perseguir lucro a qualquer custo. Será possível e desejável obter lucro com responsabilidade social. Estar no terceiro setor não significará apenas não ser lucrativo. Será possível sim ser lucrativo para quem investir na comunidade”, diz.
Na avaliação da dirigente, a experiência das organizações da sociedade civil na implantação de novos modelos, lucrativos e com bases em princípios éticos e de inclusão social, pode servir de inspiração para as empresas. Na defesa de sua tese, ela conta duas breves histórias extraídas do convívio com empreendedores sociais.
“Durante um dos encontros dos candidatos ao prêmio Empreendedor Social, que visava a elaboração do plano de negócios, surgiu o questionamento sobre o mercado. ‘Será que eu que tenho de me adaptar ao mercado ou devo procurar um mercado que se adapte aos meus princípios?’, dizia o dirigente de uma organização que trabalha com pescado e optou por uma produção limitada, com base na distribuição e não no acúmulo de renda. A conclusão foi que eles é que estão construindo esse mercado”.
“Em um outro caso, o índio André Fernando, que faz cestaria, nos disse certa vez que sua capacidade de produção era de 1.200 peças por mês para 200 trabalhadores. Concluímos se cada pessoa fazia apenas seis cestas por mês, produtividade que parecia muito baixa. Então, André olhou para gente com toda a sua sabedoria e disse: ‘as 200 pessoas não trabalham todo mês, mas só quando precisam de dinheiro. Caso contrário, dão seu lugar para outra pessoa’.
 
Ferramentas que concretizam
 
Há alguns anos, soaria, no mínimo, muito estranho a história de empreendedores sociais que se organizam a partir de planos de negócios orientados pela empresa de consultoria internacional McKinsey ou de entidades da sociedade civil que aplicam as ferramentas da gestão pela Qualidade Total do Instituto para o Desenvolvimento Gerencial – INDG. O fato é que já há experiências bem-sucedidas de pontes entre o segundo e o terceiro setores no Brasil.
O INDG, por exemplo, foi contratado em 2002 pela Fundação Brava para, com base nas ferramentas de gestão pela Qualidade Total, orientar o Banco da Providência na redefinição de seu negócio, metas e estratégias. Criado em 1959, no Rio de Janeiro, como uma iniciativa de pessoas da sociedade civil para atender demandas sociais de diversas naturezas, o Banco cresceu sem planejamento. E a perda do foco resultou em ameaçador desequilíbrio financeiro. Com o apoio da Brava, o INDG ajudou o Providência a implementar suas novas metas, utilizando o Gerenciamento da Rotina do Dia-a-Dia, ferramenta relativamente comum entre empresas, mas alienígena entre organizações da sociedade civil. Para tanto, lançou mão do famoso método PDCA, um plano de ação composto de quatro etapas básicas, cada uma delas representada por uma sigla originária do inglês: Planejar (P), Fazer (D), Checar os Resultados (C) e Agir Corretivamente (A).
“Se as intenções forem boas mas não houver resultados, dificilmente haverá condições que garantam a continuidade da organização, seja ela de primeiro, segundo ou terceiro setor”, afirma Marina Ituassú, consultora do INDG. A superintende do Banco da Providência, Clarice Linhares, concorda com a tese. Para ela, sua organização saiu da experiência de planejamento estratégico melhor do que entrou, a despeito das dificuldades de adaptação cultural a um novo modo de encarar resultados. “Passar a trabalhar com metas e avaliação de resultados não foi um processo fácil. Mas sobrevivemos a ele. E hoje a quase totalidade da equipe reconhece benefícios concretos, especialmente para o público de nossas atividades. A vantagem de usar um modelo como o PDCA é que ele possibilita lançar luz sobre nossas dificuldades, o que já é o primeiro passo para começar a superar desafios.”
Para Marcos Fernandes, sócio da McKinsey, que lidera as iniciativas da parceria Ashoka-McKinsey, um bom planejamento faz a mesma diferença para o êxito de empresas e de empreendimentos sociais. Acostumado a trabalhar com lideranças empresariais, Fernandes mostra entusiasmo ao comentar o apoio técnico da consultoria aos empreendedores na elaboração de seus planos de negócios. Hoje ele coordena 60 consultores voluntários que acompanham os candidatos ao Prêmio Empreendedor Social. “Esta parceria faz parte de nossa visão sobre responsabilidade social. Entramos com o que melhor sabemos fazer. Ao transferir para o terceiro setor um conhecimento útil de gestão, estamos contribuindo, de alguma forma, para a melhoria dos resultados das ações sociais do país”, conta. Segundo Fernandes, a estrutura utilizada para o plano de negócios dos empreendimentos sociais segue, a rigor , os mesmos passos sugeridos às empresas, como a elaboração do sumário executivo, organização, definição do produto-serviço, do mercado, das etapas do marketing, equipe gerencial, planejamento financeiro, definição de riscos e oportunidades e plano de implementação.
Um bom exemplo de que o planejamento estratégico contribui decisivamente para o sucesso e a sustentabilidade de um “negócio social” é o Projeto Saúde & Alegria – PSA, comandado desde 1987 pelos irmãos Caetano e Eugênio Scannavino, este último fellow da Ashoka desde 1995. O PSA atua em comunidades extrativistas da zona rural dos municípios paraenses de Santarém, Belterra e Aveiro, onde apóia, com o suporte de equipes multidisciplinares, processos participativos e integrados de desenvolvimento comunitário global e sustentado. De 16 comunidades iniciais, hoje já cobre 143, beneficiando cerca de 29 mil pessoas. Coordenador do Projeto, Caetano Scannavino conta que a sua organização aprendeu “na marra” a importância da gestão para a sustentabilidade: no início dos anos 90, ela quase fechou quando o presidente Fernando Collor anunciou a suspensão dos investimentos do BNDES, até então a única fonte de financiamento do PSA. “Mesmo com dificuldades financeiras, fomos eleitos pelo Governo Federal como organização modelo para a Eco-92. Tivemos de demitir todos, mas deixamos a porta entreaberta”, diz. O PSA se viu forçado pelas circunstâncias a limitar sua atuação a ações pontuais. E até zerar o déficit, trabalhou com o pouco recurso financeiro de que dispunha. Em 1995, já fellow da Ashoka, Eugênio foi orientado a pensar em alternativas de sustentabilidade. Entre as novas idéias de gestão colocadas em prática, o PSA criou um conselho de lideranças de comunidades, implantou o planejamento participativo e indicadores de monitoramento de avaliação, passou a desenvolver ações com o mínimo de custos, o máximo de impacto e totalmente afinadas com políticas públicas. Hoje, são 40 pessoas contratadas em regime de CLT e 60 voluntários, além de 120 voluntários nas cidades atendidas.
Rumo à certificação…
 
Semelhante à série ISO 9000 dos produtos e serviços do segundo setor, já há no terceiro setor, mais precisamente para os pequenos produtores interessados em produtos ecológica e socialmente corretos vendidos a um preço justo, a FLO-Cert, o braço de certificação da Fair Trade Labelling Organizations International – FLO, que tem sede em Bonn, na Alemanha e é a principal organização de comércio justo certificado em todo o mundo. O objetivo da FLO é melhorar a situação de pequenos produtores de países em desenvolvimento por meio de critérios de comércio justo, uma estrutura comercial com condições que respeitam seus interesses. Hoje, cerca de 1 milhão de produtores, trabalhadores e suas famílias, em mais de 45 países, se beneficiam da venda de produtos com o selo da FLO.
Os critérios de comércio justo da FLO contemplam requerimentos mínimos, a garantia de um preço justo e o prêmio social, montante destinado a investimentos no desenvolvimento econômico, ambiental e social dos produtores. Tais investimentos são estimulados por meio de requerimentos de processo. “Há critérios para café, chá, cacau, açúcar, mel, bananas, frutas frescas, frutas secas, nozes, quinoa, sucos de frutas, arroz, vinho e bolas esportivas. Estão em desenvolvimento critérios para outras frutas tropicais, sementes, vegetais frescos, algodão e têxteis”, afirma Felipe Arango, consultor da Business Social Development – BSD que representa a FLO no Brasil.
Entre 2003 e 2004, as vendas de comércio justo certificado em todo o mundo cresceram 44%. Em volume, os mais importantes mercados são o Reino Unido e a Suíça.
No Brasil, há atualmente 17 organizações certificadas pela FLO-Cert, produzindo manga, banana, suco de laranja, castanhas e café. Entre elas estão a Associação dos Pequenos Produtores do Município e Comarca de Poço Fundo e Coopfam, mineira que comercializa café. A organização tem hoje 140 associados.
“Toda a nossa produção é exportada para os EUA”, afirma o presidente da Coopfam, Luis Adauto de Oliveira. “A certificação é de grande importância para a entidade, já que é por causa dela que nosso café possui preço diferenciado, o que ajuda a agregar valor à mercadoria”. Segundo Luis Adauto, a certificação é o que diferencia o produto e o grande resultado para a sua associação é a permanência do agricultor na sua propriedade rural com melhor qualidade de vida e a aquisição da sede com um armazém.

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