Vida Solidária – A fada madrinha da sustentabilidade

Vida Solidária – A fada madrinha da sustentabilidade

O que pensa e o que quer a mulher que dedicou parte importante de sua vida a convencer o mundo de que é possível conciliar desenvolvimento com respeito ao meio ambiente.
Por Caio Neumann
Não foi ela que criou o conceito de desenvolvimento sustentável. Mas foi por causa do relatório Bruntland, coordenado em 1987 por esta senhora loura e de olhos azuis, que o termo se tornou conhecido e se disseminou por todo o mundo. Na presença de Gro Harlem Bruntland, uma pergunta se apresenta como inevitável: “Vinte anos depois da publicação do documento Nosso Futuro Comum, um dos primeiros a apontar os riscos do aquecimento global, a senhora acrescentaria ou tiraria alguma idéia ali colocada?”
A resposta sai em um tom suave, mas firme. Com a mesma contundência que fez dela, segundo o jornal britânico Financial Times, uma das quatro lideranças européias mais influentes dos últimos 25 anos, a senhora Bruntland defende o vigor do texto e a consistência das recomendações feitas à época.  “O tempo passou e o relatório permanece atual em sua essência. O que vemos hoje no debate sobre sustentabilidade são nomes diferentes para os mesmos conceitos. Mas a análise e as propostas de solução para o problema continuam atualíssimas. Deixamos claro que a questão não era só de governos, mas de todas as pessoas, empresas e ONGs, de todos que moram neste Planeta”, disse em entrevista à revista Idéia Socioambiental.
Na opinião de Gro, a análise sobre aquecimento global do Relatório Bruntland já tratava das variáveis hoje debatidas pelo grande público. Os resultados da pesquisa do IPCC, e o tom dramático com que foram divulgados, apenas mostram que o problema está mais grave e mais próximo do que parecia há 20 anos, sinal de que o homem seguiu seu curso de intervenção desastrosa no patrimônio natural do Planeta. “O prêmio Nobel da Paz conferido recentemente ao IPCC e Al Gore, um porta voz ativo do tema, confirmam algo importante que estava na base do nosso relatório: ciência e conhecimento são absolutamente fundamentais para enfrentar as mudanças climáticas”, afirma.
“Conceito de sustentabilidade se expandiu e gerou enorme influência em todo o mundo”
Sobre Gro costuma se dizer, não sem razão, que é uma espécie de madrinha da idéia de que o desenvolvimento precisa respeitar as limitações dos recursos naturais e não pode gerar mais pobreza e desigualdades sociais. A justa fama de precursora do conceito de sustentabilidade se deve à   menção deste termo, pela primeira vez, no documento Nosso Futuro Comum, mais conhecido como Relatório Bruntand porque, à época, ela presidia a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas.
Carta máxima da sustentabilidade, o relatório completa, neste ano, duas décadas. E a sua autora, aos 68 anos, segue firme na defesa de suas idéias. Aparentemente pouco vaidosa dos feitos obtidos até aqui na vida pública, Gro não consegue disfarçar uma ponta de orgulho quando fala do quanto o Relatório contribuiu para fixação e disseminação de um conceito que hoje está presente na agenda de governos, nas reuniões de negócio, nos desfiles de moda, nos empreendimentos imobiliários e nas rodas populares de conversa. “O conceito de sustentabilidade se expandiu e gerou enorme influência. Tudo o que fizemos, na época do Relatório, foi analisar para onde o mundo caminhava e como o modelo de desenvolvimento predominante afetava a humanidade e o meio ambiente. Ficou claro que a situação exigia um novo modelo, mais sustentável, de desenvolvimento. Estabelecemos um marco de mudança. E discutimos qual seria o grau de colaboração necessário”, diz.
“Com a ameaça do aquecimento global, as coisas tendem a se encaminhar mais rapidamente”
A partir deste ponto — ressalta — a questão era saber se o apelo em torno da sustentabilidade seria “ouvido” pelo mundo, se seria compreendido e se ganharia espaço crescente na pauta de governos, empresas e ONGs. Isso aconteceu? “Sim. As idéias do relatório foram revolucionárias, ganharam força global e exerceram influência em várias direções”. Uma primeira prova da força do que pregava o Relatório e do quanto suas idéias avançaram foi –na avaliação de Gro — a Rio-92.
“Apenas cinco anos depois do documento, o mundo se encontrava preparado para negociar e concordar com a Agenda 21. O Relatório ajudou a desencadear movimentos regionais e globais em torno da temática. E o assunto voltou, no início dos anos 2000, a ganhar relevância ao ser incluído entre os Objetivos do Milênio da ONU”, conta. O passo –admite –poderia ter sido maior. Afinal, os objetivos da Agenda 21 não foram perseguidos com o senso de urgência que se esperava. Nem todos os países resolveram integrar-se ao pacto em defesa do Planeta “Mas com a ameaça tão próxima do aquecimento global, que já prevíamos há 20 anos, as coisas tendem a se encaminhar de ouro modo, mais rapidamente”, afirma.
“É necessário outro modelo regulatório”
Para Gro, o problema é que os diferentes setores – empresas, organizações não governamentais e governo – parecem não ter se dado conta dos seus papéis. Enquanto algumas empresas lideram processos de transformação em seus setores de atividade, outras permanecem ignorando os avisos do Relatório. O mesmo acontece com os países, que poderiam ser divididos entre os que conhecem mais e os que praticam menos o conceito de desenvolvimento sustentável.
O espírito “cão de guarda” das ONGs –admite – ajuda muito. Mas o que poderia agilizar esse processo seria a criação de um novo modelo regulatório, uma nova forma de governança capaz de cruzar as fronteiras dos países.  “O sistema antigo já não funciona. Hoje, grande parte das empresas é multinacional e muitas empresas nacionais já exportam para outros países. Necessitamos de mecanismos globais ou padrões éticos para regular as formas de se fazer negócios”, defende. “Cabe aos governos negociar as regras do jogo que devem ser aplicadas de certa forma no mundo todo. E para que isso aconteça as empresas precisam agir, as ONGs devem seguir ativas, apoiando uma forma de governança que não se baseie apenas nas atividades econômicas”, afirma, definindo, ela própria,  o papel de cada integrante do jogo.
E quanto ao cidadão comum? É possível atingir o desenvolvimento sustentável sem alterar o modelo mental atual da sociedade? Esta é uma questão muito difícil na opinião desta cidadã norueguesa, médica por formação, dona uma carreira profissional ímpar, que se dedicou à política e ainda cuidou de uma família de quatro filhos. “Acredito que inspirar novos padrões de desenvolvimento e encontrar alternativas seja uma etapa fundamental do desenvolvimento sustentável. Ao mesmo tempo, é preciso tomar muito cuidado com esses pensamentos. Não podemos retornar aos padrões de desenvolvimento baseados apenas na cultura e na produção local. Considero perigoso uma volta romântica ao passado. O  mundo era outro”.
“Próximas gerações precisam ter o direito de fazer suas escolhas”
A receita, para ela, é combinar as boas experiências e habilidades com uma responsabilidade maior pelo todo. E, uma vez que cada indivíduo  é autônomo em suas escolhas, estas deverão, daqui por diante,  ser responsáveis para com o futuro do mundo. “Do contrário, se extinguirmos os recursos no presente, não daremos a oportunidade de as próximas gerações também fazerem suas escolhas”, ressalta, fazendo uma referência ao contexto da sua famosa definição de desenvolvimento sustentável que correu o mundo.
No legado a se deixar para as futuras gerações duas questões preocupam em particular a ex-primeira ministra da Noruega, comumente chamada de “mãe da sustentabilidade”:  a escassez de água – cuja previsão é de que até 2025 deverá afetar 1,6 bilhões de pessoas – e de energia. Tema inserido tanto na Agenda 21 como nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a escassez de água é ainda mais grave por ser um aspecto importante do aquecimento global. Igualmente preocupante –na visão de Gro– é a escassez de energia, especialmente nos países pobres que, por falta de alternativas, usam a queima da madeira como fonte para as atividades domésticas, resultando em desmatamento e nas suas conhecidas conseqüências. “Precisamos desenvolver novas fontes de energia para esses países. São desafios que teremos de enfrentar e aos quais deveremos nos adaptar no futuro”, diz Gro.
“Biocombsutíveis não são a solução, mas apenas parte dela”

Nesse cenário, seriam os biocombustíveis uma solução? Não na opinião de mrs. Brundtland. “O biodiesel é parte de um mix de alternativas energéticas que darão diferentes soluções e reduzirão os impactos sobre o meio ambiente. A produção do etanol, um pouco menos poluidor, como alternativa à gasolina, é parte desse mix. Não é ainda a solução, apenas parte dela”, esclarece. Gro alerta para a necessidade de “cautela” na forma de produção de biocombustíveis, sob pena de que venha a gerar novos e graves problemas, como péssimas condições de trabalho no campo, aumento do preço dos alimentos, desmatamentos e outras agressões vis ao meio ambiente.
E já que falamos em etanol – opção brasileira de modelo alternativo de geração de energia – o que pensa Gro Harlem Brundtland sobre a discussão em torno de outra questão brasileira – a Floresta Amazônica? “É uma grande preocupação para todos nós e não apenas para o Brasil”, responde rápido. “É preciso pensar num modo de protegê-la e saber que uso econômico se pode fazer dessa área.
Acredito que este seja um dos principais assuntos do debate sobre desenvolvimento sustentável. Vejo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem a preocupação de estabelecer mecanismos para que as coisas sejam feitas de forma adequada. Por outro lado, não é fácil encontrar o caminho”, diz.  E porque é tão difícil, de forma geral, criar políticas de desenvolvimento sustentável,  já que governos dos mais diferentes países afirmam se preocupar com o tema? “É uma questão de decisão política, que implica mudar as regras em várias áreas, como a industrial, energética e de transporte. Em países pobres, é ainda mais difícil, porque o ganho no curto prazo parece mais importante”, finaliza.
Figura notável
Primeira mulher a chefiar um governo na Noruega (foi primeira-ministra aos 42 nos em 1981, e entre 1986 e 1996) e um partido político (o Social-Democrata dos Trabalhadores, de 1981 a 1992). Ministra do Meio Ambiente aos 35 anos (1974). Primeira médica a assumir a direção-geral da Organização Mundial da Saúde (1988-2003). A biografia de Gro Harlem Brundtland, nascida em Oslo, em 20 de abril de 1939, está recheada de fatos notáveis e transmite uma solidez compatível com sua figura de política, ambientalista e médica.
O seu ingresso na política ocorreu precocemente aos sete anos de idade. Filha de ex-ministro e integrante fervorosa do movimento feminista de seu país, ela foi convidada a ocupar um ministério depois de uma controversa e bem-sucedida campanha nacional em defesa da legalização do aborto. O governo norueguês rendeu-se a duas de suas qualidades que a transformaram  em lenda do debate ambiental:a coragem para brigar por boas causas e enfrentar polêmicas, e a capacidade de argumentar na defesa de seus pontos de vista.
Como primeira-ministra, concentrou esforços na estabilização econômica e na luta contra o desemprego e ficou famosa por nomear oito mulheres para cargos-chaves de seu gabinete. Na OMS, por lançar uma campanha bem-sucedida contra a indústria do tabaco que se espalhou pelo mundo. Mas o grande prestígio internacional ela obteve mesmo como presidente da Comissão para o Meio Ambiente da ONU, depois de tornar público seu relatório sobre meio ambiente – Nosso Futuro Comum –, que definiu o conceito de sustentabilidade, em 1987.
Foi sob sua liderança que a Noruega iniciou as negociações de adesão à União Européia, em 1994. Apesar de sua grande popularidade, a proposta foi rejeitada pelos noruegueses, o que foi considerado uma importante derrota. Em 1992 abandonou a direção do Partido dos Trabalhadores e, em 1996,  retirou-se da cena política.
O coração da Samaumeira
Gro Brundtland esteve no Brasil pela primeira vez  em março de 1992,  com uma caravana de jovens noruegueses que visitaram Manaus e participaram da inauguração do Parque do Mindu (um parque urbano onde se pode ver grupos de sauim-de-coleira, um  espécie de primatas das mais ameaçadas do Brasil).
Na ocasião, a então primeira-ministra da Noruega plantou uma samaumeira – árvore sagrada para os índios ticuna, citada no livro Nosso Povo (Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1985), que traz o episódio mítico “O Coração da Samaumeira”, relatado por membros da tribo. A Samaumeira do Parque do Mindu é hoje  um símbolo da defesa da ecologia em Manaus.
O Relatório que mudou o mundo
Depois do Relatório Nosso Futuro Comum – mais conhecido como Relatório Bruntland – o mundo nunca mais foi o mesmo. Elaborado em 1987 sob a coordenação de Gro Harlem Bruntland, então presidente da Comissão Mundial sobre Meio ambiente e Desenvolvimento da ONU, o Relatório apontou de forma pioneira,  a necessidade de mudar os padrões de produção e consumo para assegurar um desenvolvimento sustentável e um planeta íntegro e saudável às gerações futuras.
Nele, Gro Bruntland afrimava  que o desenvolvimento deveria “atender às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”. Essa definição ecoou nos mais diferentes cantos do mundo e passou a orientar a discussão sobre desenvolvimento e crescimento econômico.
Crítico ao modelo de desenvolvimento adotado pelos países mais ricos, e repetido pelos emergentes, o relatório já alertava para a incapacidade de os ecossistemas suportarem o uso descontrolado dos recursos naturais e previa, entre outros graves problemas, o aquecimento global.
Uma de suas premissas mais importantes é que as relações entre homem e meio ambiente devem respeitar um limite mínimo para o bem-estar da sociedade e um limite máximo para a utilização dos recursos da natureza. Não se pode admitir,  pregava,  crescimento econômico sem preservação ambiental e combate á pobreza.
Na defesa da tese do desenvolvimento sustentável, o documento sugere que os países adotem como medidas internas a limitação do crescimento populacional, a garantia de recursos básicos (água, alimentos e energia) no longo prazo, a conservação da biodiversidade, a redução no consumo de energia de matrizes fósseis, o desenvolvimento de tecnologias baseadas em fontes renováveis (solar, éolica e geotérmica), o controle da urbanização acelerada e o suprimento de necessidades básicas dos seres humanos, como sáude, educação e habitação.
O mundo pós-Kyoto
“Quando discutimos Kyoto, no princípio de tudo, a intenção era fazer com que todas as nações assumissem obrigações e compromissos efetivos. Na época, os países em desenvolvimento tinham uma opinião sobre como isso deveria ser feito. Mas na prática, eles próprios não estavam se comprometendo. Não concordei com essa posição. Hoje, dez anos depois, vejo que minha tese estava correta. Os países em desenvolvimento estão se industrializando e também se tornaram parte do problema. Hoje é necessário um  acordo mais abrangente que reúna os países ricos, os pobres e os em desenvolvimento.”
O papel das empresas
“ A maioria das grandes empresas tem demonstrado preocupação com o tema. Existe um movimento global. Corporações mais progressistas e visionárias estão revendo seus modos de produção e seus produtos. Estão descobrindo que sustentabilidade ajuda a ser mais competitivo e siginifica o futuro dos seus negócios. Olhar para o futuro faz sempre muito bem para qualquer empreendimento. Até os investidores, que antes não ligavam muito para o tema, estão cada dia mais preocupados, porque percebem que as pessoas vêem e julgam as companhias a partir de critérios de sustentabilidade.”
Água e energia
“ Água e energia se transformaram em parte importante da questão do aquecimento global. Pessoas precisam de energia. Pessoas pobres precisam de mais energia do que antigamente. Assim, a situação atual é insustentável. Precisamos desenvolver matrizes energéticas mais limpas nos países pobres, evitando mais queima de petróleo.”
Repensar de modelos mentais
“A noção de desenvolvimento sustentável é um convite à revisão de modelos existentes, seja de produção nas empresas, seja de consumo entre os indivíduos. Desenvolvimento e sustentabilidade já não podem mais ser vistos como antagonistas. Acho um perigo tentar um retorno romântico ao passado, classificando as empresas de antigamente como melhores e mais preocupadas com indivíduos e meio ambiente. O mundo era outro.”

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