Vida Solidária – O caçador de pipas – Parte 1

Vida Solidária – O caçador de pipas – Parte 1

Prêmio Nobel da Paz de 2007, pai do microcrédito, o homem que instalou em Bangladesh o mais impressionante ciclo de redução de pobreza já experimentado por um país, agora quer discutir sustentabilidade e espalhar “empresas sociais”
De um Prêmio Nobel da Paz espera-se sempre, em qualquer situação, que tenha comportamento magnânimo, caráter firme e atitudes à altura da distinção conferida a tão poucos mortais. Muhamad Yunus não fugiu à regra em sua recente visita ao Brasil, no último mês de novembro. Duas horas antes de fazer a palestra de encerramento de um evento sobre energias renováveis, em Florianópolis (Santa Catarina), o famoso criador do Grammen Bank, a mais bem-sucedida experiência de microcrédito no mundo, cumpriu o protocolo de uma entrevista coletiva com 20 jornalistas ávidos por ouvir suas idéias sobre combate à pobreza e desenvolvimento sustentável.
Enquanto ainda se acomodava no sofá, cercado por microfones, gravadores e holofotes, e antes que lhe fosse feita a primeira de uma série interminável de perguntas que responderia com brilho e serenidade, Yunus tomou a palavra para expressar um sentimento que o espetava . Embora ninguém naquela sala parecesse se lembrar do fato, ele fez questão de justificar a sua ausência de Bangladesh num momento especialmente doloroso para o seu país. “Cheguei a pensar em não vir. Mas decidi, na última hora, respeitar o compromisso de estar aqui. Todos vocês sabem que Bangladesh sofreu a ação de um terrível ciclone de ventos de 250 quilômetros por hora. Cinco mil pessoas morreram. Outras cinco mil estão desaparecidas, provavelmente mortas também. Muitas delas eram tomadores de empréstimo do Grameen. Nossa preocupação agora é financiar a recuperação da dignidade das vítimas que perderam casa, móveis e os poucos bens de que dispunham”, disse em tom pausado, grave mas suave. O burburinho dos repórteres deu lugar a um silêncio respeitoso. Até as moças que serviam o café cessaram o tilintar das xícaras e pararam para ouvir aquele homem com bata azul e ar de monge.
Catástrofes como esta não são exatamente uma novidade em Bangladesh. Em 1970, um vendaval semelhante dizimou 500 mil pessoas. Vinte e um anos depois, outras 142 mil morreram arrastadas por  terríveis inundações. Yunus acha, no entanto, que o seu país já começa a sentir na pele os duríssimos efeitos das mudanças climáticas. A cada ano –segundo ele — os ciclones estão mais violentos e as enchentes, mais frequentes. O resultado da recente tragédia provocada pelo ciclone Sidr só não foi pior –lembra –porque havia um sistema de prevenção montado.
Sabe-se, por exemplo que o nível do mar está subindo, em média, 2 milímetros por ano na Baía de Bangkok. Para um pequena nação de 142 mil quilômetros quadrados, que tem 20% do seu território um metro abaixo do nível do mar, esta é uma notícia para tirar o sono. Boa parte dos seus 150 milhões de habitantes, apertados naquele pedaço de chão com a maior densidade demográfica do Planeta, encontram-se sob forte ameaça. “É importante, nesse momento, ressaltar o tema do aquecimento global para que os países pobres tenham o direito de viver em paz, sem sobressaltos”, disse Yunus, juntando na mesma resposta pobreza e mudanças climáticas, para gozo dos jornalistas que esperavam dele frases contundentes e idéias com teor político.
Apesar dos ciclones, a caminho de extinguir a pobreza
Vida dura a de Bangladesh. A ameaça ambiental ressaltada por Yunus ganha corpo justamente no momento que o País caminha para consolidar um dos mais impressionantes ciclos de redução de pobreza do Planeta, iniciado, em grande medida, há 31 anos, pela ação do Grameen Bank, e a sua oferta de crédito produtivo a mulheres empreendedoras. Quando Bangladesh se tornou um país independente do Paquistão, em 1971, 80% de sua gente vivia na mais completa miséria. No ano de 2000, este percentual já havia diminuído pela metade.
“Antes do ciclone, estávamos no rumo de atingir o nosso objetivo de diminuição da pobreza para 20% até 2015. E ainda espero, mesmo com os nossos graves problemas, cumprir essa meta. Até 2030, ninguém mais no meu país será pobre”, afirma o sábio homem de 67 anos, que fez do Grameen Bank, ou Banco da Aldeia, um parâmetro de desenvolvimento sustentável para populações de baixa renda.
Hoje o Grameen tem 7,5 milhões de clientes, em sua grande maioria (97%) mulheres que se tornaram acionistas depois de comprar uma ação ao preço de U$ 1,50. É um grande banco nacional, com capital de U$ 10 milhões, 27 mil funcionários, 2500 agências e um volume anual de empréstimo de U$ 500 milhões, a juros muito baixos, para promover a geração de renda das famílias mais pobres. Sem a pompa de Wall Street, o que chama a atenção no sucesso do Grameen é que –até onde isso seja possível – ele combina, numa mesma experiência, a tese e a antítese do capitalismo.
Perguntado sobre que tipo de pensamento ou autor o inspiraram no momento de criação do Banco da Aldeia, Yunus dispara sem o receio de parecer menos importante: “Não tinha nenhuma idéia do que fazer. Apenas sentia a necessidade de fazer algo pelos meus compatriotas que morriam de fome”
Para compreender sua frase, é preciso voltar três décadas no tempo. No início dos anos 1970, ele era um jovem e promissor mestre universitário nos Estados Unidos, que acompanhava, à distância mas com interesse e entusiasmo, os movimentos que levariam seu país a se separar do Paquistão, depois de muito derramamento de sangue. Em 1973, renunciou ao contracheque americano e  voltou para Bangladesh movido por um sentimento solidário de ajudar na reconstrução de seu país, devastado pelos efeitos da dolorosa independência. Acabou, como era de se esperar, na Universidade de Dacka, lecionando Economia. Espírito inquieto, não demorou muito para ser atormentado por um sentimento de frustração: os cálculos econométricos e “teorias elegantes” que ensinava em bengali –lembra — em nada contribuíam para mudar a vida de sua gente. Fora dos muros da universidade, seus compatriotas continuavam morrendo de fome, aos olhos de quem quisesse ver.

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